domingo, 29 de janeiro de 2023

Mês de todos os medos


 

Dizia o Salvador Sobral que era um rapaz melodramático, quando estava triste ouvia canções tristes para chorar e viver plenamente a dor, nada se se alegrar para esquecer. Concordo com ele, há que escavar bem o buraquinho pois é no fundo dele que o sol se encontra. 

Alguns podem até achar esta canção alegre, a mim só me leva às lágrimas. E há esse mês a chegar, Fevereiro, é o meu mês do medo, da dor, da solidão maior, das pequenas vitórias, das grandes interrogações. Este ano tenho uma coisa a ajudar: inspirarei muito Alentejo.

~CC~


sábado, 28 de janeiro de 2023

Dia ganho

 

Final da aula da manhã de hoje, sempre aquele receio da pergunta, mas faço-a: digam lá o que é que posso melhorar...

Só queremos perguntar uma coisa: vai ser nossa professora no 2º semestre?! Risos, festa...volte professora, volte. Adultos, alguns o dobro de mim, alguns muito próximos da minha idade.

Esqueçam tudo o que disse sobre cansaço, sim, ainda vale a pena.


~CC~

quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

Descanso

 

O pensamento mais negro ocorreu-me ontem, pensei em desligar para sempre o telemóvel e ter apenas um telefone fixo secreto para familiares e amigos. Todos os dias o telemóvel toca com um pedido de trabalho, um convite para mais qualquer coisa, se pudesse alegrava-me, mas o excesso é tal que ocorre o efeito contrário. Desisti pelo receio que o telefone fixo não tocasse, um pensamento talvez ainda mais negro.

Há um momento em que respiro, é quando seco o cabelo à janela e vejo uma nesga de rio lá ao fundo e os dois castelos, cada um na sua colina. Há paisagens piores, há vidas piores.

~CC~


terça-feira, 24 de janeiro de 2023

Laurinda (IV)

 

Naquele tempo não se podia amar tudo e todos. Uma rapariga amava um rapaz e um rapaz uma rapariga. Por isso ela lembra-se daqueles seis meses de inebriamento como uma memória não autorizada de si mesmo. Agora que o perigo passou e já envelheceu o suficiente, pode recordar-se da boca mais bela que alguma vez viu, do modo dela sorrir, do calor dos seus corpos quando dormiam encostadas. Uma única vez sentiu que era um calor excessivo, uma vertigem para lá do que era suposto.

Ela não sabe se outros passam por um momento assim, em que não sabem para que lado pende a sua orientação sexual, nunca falou desse assunto com ninguém. E quando pensa que podia ter amado uma mulher, pensa só e exclusivamente naquela amiga que era como um junco verde e cujos lábios tinham o tom das cerejas. Tudo morreu ali. Mais tarde Jacinta ainda a viu umas quantas vezes mas nada nela era igual, tinha amadurecido e a idade abafou a sua frescura juvenil, a sua beleza emergente, a sua inocência. Ambas se tinham casado com homens e tido filhos, sido mais ou menos felizes. Agora, ambas sozinhas, nunca se encontravam ou se viam, Laurinda evitava-a mesmo, do mesmo modo que evitava o seu corpo e a sua sexualidade. Contudo, quando se permitia tocar-se, mesmo ao de leve, era a memória da amiga jovem que emergia.

~CC~





sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

A mão na mão, a mão no ombro

 

Uma e outra e outra vez a certeza de que nos momentos difíceis aqueles que nos dão a mão emergem como o andaime, a força, a sustentação da vida, quer seja no campo pessoal ou profissional.

E dar a mão não é ser uma voz doce, concordante ou alinhada, É o modo como essa voz se ergue, como se modula, como até pode exigir mas mesmo tempo que dá e ampara.

Tenho vivido dias intensos destes, em que tenho que ser essa mão no ombro que vai agarrar as lágrimas que descem pelo rosto de alguém, mas tenho tido também essa necessidade. De algum modo isso tem acontecido, mesmo que não sempre, não no imediato, nem sempre de quem espero. No outro dia aquele baloiço na árvore no final de um sábado de trabalho, aqueles áudio de ex-alunos gravados para chegarem até mim, aquela companheira nova de trabalho que me disse: gostei.

~CC~

domingo, 15 de janeiro de 2023

Gabriela (III)

 

Aquele beijo aos doze anos tinha sido bruscamente interrompido pela voz da irmã mais velha dela. E ela também tinha dito que se se voltasse a repetir, iria contar aos pais. Gabriela não repetiu. Talvez tenha sido esse medo, talvez apenas por serem tão novos. A verdade é que aos treze já frequentavam escolas diferentes. 

Anos mais tarde era mesmo ele junto ao camião de mudanças, apenas duas casas a seguir à sua. Retomaram a amizade, agora como vizinhos adultos, cada um com a sua família. Assistiu ao modo como a família dele foi crescendo, chegaram rapidamente às três crianças. Ela não,  primeiro por opção, depois por inércia e por fim por já não ter com quem. Os miúdos na verdade tinham quase crescido nas duas casas, eram como sobrinhos para ela. Nunca, em todos esses anos, uma palavra sobre cada um deles ter sido o primeiro amor do outro. Gabriela acreditava mesmo que ele já nem se lembrava. E havia harmonia, entendimento e paz naquela família, como tal ela não faria nada que perturbasse aquela união que só não designava como feliz por ter medo de o fazer. Na verdade não tinha sequer inveja, ela tinha outro rumo, outro modo de estar, não se arrependia do seu divórcio e amava a sua liberdade, a profissão leva-a para tantos cantos do mundo que estar amarrada a uma casa era impensável. Mas não podia negar que ele ainda a perturbava um bocadinho, que tinha arrumado tudo num canto e não queria mexer. 

Quando ele enviuvou sentiu-lhe a tristeza de perder a companheira de uma vida. Nos dois anos seguintes mal o viu, os filhos vinham buscá-lo com frequência, já eram adultos e tinham construído as suas vidas noutras cidades. Ela, bem pelo contrário, gozava finalmente a sua casa, a lareira, o silêncio, o prazer de ler. A amizade que durante anos tinha existido parecia ter-se evaporado, até aqueles que designava como sobrinhos já mal lhe batiam à porta. Mas depois ele foi voltando, estando mais por ali, sorriam, cumprimentavam-se, sentavam-se à mesa do café quando calhava, trocavam livros.

Tinha aberto aquele livro com muita curiosidade por ele ter dito que tinha gostado muito. Quando o abriu caiu qualquer coisa, parecia um talão de multibanco. Mas era afinal um bocadinho de papel, nele estava escrito: Temos um beijo por retomar.

~CC~






segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Nadine (II)

 

Tinha aquele nome que se estranhava mas era só uma miúda de aldeia. É bem verdade que tinha nascido em França mas tinha sido ali, entre pedras e vento, que crescera. Era a última filha, já tardia e numa fase em que os pais já tinham decido regressar, amealhado que estava o bastante para garantir a velhice no lugar em que se falava a sua língua.

E o nome combinava com aquele ar trigueiro, olhos esverdeados, cabelo alourado, tez branca. Tinha qualquer coisa de anjo, até por não ser especialmente faladora e distrair-se com facilidade. Sempre na lua, como dizia a mãe. Fez a escola na aldeia, depois o Ensino Básico na vila e para frequentar o Ensino Secundário foi para a sede do concelho. Tinha facilidade em aprender mas nenhum gosto especial por nada e desviava o assunto quando lhe falavam em futuro e em profissões. Costumava dizer que queria continuar a aprender, a aprender para sempre. Também não tinha interesse por rapazes, nem por namorar, recusara todas as aproximações e convites. 

Até que lhe apareceu outro anjo. Era tão parecido com ela que podiam ser irmãos. Conheceu-o na turma do Ensino Secundário. Eram os únicos a participar de forma interessada e constante nas aulas de Filosofia. Depressa se tornaram amigos e quase inseparáveis, protegendo-se um ao outro constantemente. Nas férias de Natal, cada um retornou a casa. Ela sofreu horrores com aquela separação forçada. Mas a felicidade chegou em forma de postal, um poema e no final a frase: já com saudades tuas.

Se ela era um anjo, agora vivia literalmente nas nuvens. Contudo, nada acontecia, ela não era capaz de dizer que o amava, não se tocavam. Até que chegou aquele dia de Maio, aquela noite quente e estrelada. À tarde ele tinha-a convidado para darem uma volta ao parque depois do jantar. Ela tinha a certeza que a hora tinha chegado, era difícil conter a tremura que sentia nas pernas.

Ele foi dizendo que tinha algo difícil para lhe dizer. E ela que ele lhe podia dizer tudo, tudo o que quisesse. Então, chegou de facto uma declaração de amor, mas não lhe era dirigida. Era sim destinada a um colega de turma, rapaz em tudo diferente deles, doido por futebol e sem pontinha de filosofia. Não era apenas ele gostar de rapazes que a chocava, era também ser aquele tipo de rapaz. 

Ela envelheceu de repente, tirou as asas, e sem elas teve muita dificuldade em voltar a voar.

~CC~



domingo, 8 de janeiro de 2023

Luísa (I)

 

Luísa tinha 42 anos e um divórcio recente. Olhando para si no espelho, achava que nunca tinha estado tão bem. Finalizara uma relação com uma luz tão baça que não lhe foi difícil se iluminar. Mas com duas crianças, uma ainda pequena e outra quase jovem, um ordenado médio, uma casa alugada, não se dava a luxos. Era ela própria que ia às compras, cozinhava e limpava a casa. Tinha pouco tempo mas a amiga tinha insistido muito naquele jantar, que ia alguém que ela ia gostar de conhecer. Normalmente esse preâmbulo era tão assustador que desistia de ir, ao menos as casamenteiras à moda antiga faziam tudo com uma clareza maior. 

Aceitou por o jantar ser num restaurante de que muito tinha ouvido falar. Andou atarefada nesse sábado procurando deixar a casa limpa e o jantar feito para as crianças, uma amiga tinha ficado de passar por lá a apoiar. 

A comida de facto era divinal, as conversas triviais, o normal para quem se conhece pouco. Sentiu-se porém bastante observada, o que a incomodou e deixou pouco à vontade, como era costume, não via a hora daquilo acabar. Como num ritual obrigatório, o tal senhor pediu a Luísa o número de telefone que ela aquiesceu a dar, por educação.

Felizmente ele não ligou. Mas a amiga sim. O veredicto veio claro: gostou muito de ti e achou-te bonita...mas houve um problema...as tuas mãos cheiravam a um desinfectante que devia ter lixivia! Luísa não pode deixar de rir e de lhe perguntar se o senhor era alérgico ao produto. Ela disse que não mas que não se imaginava a estar com uma mulher que não usasse perfume. Respondeu-lhe que da próxima vez as mãos dela poderiam, por exemplo, cheirar a limão ou a laranja de algum cozinhado, com sorte não cheirariam a cebola ou a alho. 

~CC~






sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

Os distraídos

 

Há noites de sonos agitados e breves, com o nariz entupido e um acordar constante.

No meio disso os sonhos são também curtos e lembrados pois não se adormece profundamente. Foi assim que num deles deixei a chave no carro enquanto ia buscar as compras ali perto. E vi claramente o rapaz entrar, ligar o carro e ainda acenar-me.

Os distraídos, esse grande grupo, luto há muito para sair dele.

~CC~

terça-feira, 3 de janeiro de 2023

A primeira do ano

 

Moreninha, encantadora a enfermeira, bem ao contrário da outra que não me queria dar a injecção por não encontrar a prescrição. Esta só se ria: mas alguém vem fazer uma coisa destas só porque sim, isto dói, as pessoas dizem que parecem ter vidrinhos lá dentro por um bom tempo. Sim, é mesmo assim.

Demonstrou interesse, quis saber mais. Contei-lhe o básico.

E ainda saí de lá com um elogio: mas olhe, tem muito bom aspecto, ninguém diria.

O gabinete tem pouca luz, pensou o meu pessimismo, só por isso não viu tanta velhice aqui espelhada em redor dos lábios, o que mais me desgosta. Estou óptima, pensou o meu optimismo, felizmente foi esse a ganhar no adeus, bom ano, até à próxima.

~CC~