Agora vou passear para outras ruas, sem nada que me prenda, talvez até voe, se conseguir levantar os pés do chão em vez de os deixar presos a amarguras.
Só volto por isto e para isto.
https://www.facebook.com/FestivalTeatroSetubal/?locale=pt_PT
nesta rua da minha infância aprendi a voar, nunca vou deixar que me cortem as asas
Agora vou passear para outras ruas, sem nada que me prenda, talvez até voe, se conseguir levantar os pés do chão em vez de os deixar presos a amarguras.
Só volto por isto e para isto.
https://www.facebook.com/FestivalTeatroSetubal/?locale=pt_PT
Os verdadeiros habitantes das praias não somos nós, meros passeantes de Verão. Os que sabem do mar, da areia, dos animais marinhos, dos fósseis, dos pássaros, esses vivem lá todo o ano. Estou certa que nestes dias turbulentos...ou chegam de madrugada ou ao crepúsculo ou não aparecem. A mulher de calças e t-shirt e sapatos de ir à água, muito magra e tisnada do sol, de idade indistinta mas sem dúvida acima dos sessenta, saco de pano a tiracolo era um desses seres misteriosos, outros habitantes da praia. O que fazia ela antes de todos ou quase todos chegarem? Com uma caninha, ela revirava as conchas, as pedras, os buraquinhos da areia, cada duna, cada amontoado de fósseis. Era raro apanhar alguma coisa e eu não conseguia ver com clareza o que é que ela achava que valia a pena. Apenas três ou quatro vezes isso aconteceu e ela colocou algo dentro do saco. Percebi que aquilo não era um acaso, não era uma mania, não era uma coleccionadora, aquilo era um trabalho. Imaginei que as conchinhas dos chapéus, dos colares, das pulseiras talvez fossem afinal recolhidas por pessoas como ela? Quem as apanha afinal? Quem as fornece a quem cria aqueles adornos?
Tal como apareceu no meu horizonte, assim desapareceu silenciosamente. Tudo isto se passa antes dos banheiros chegarem, supostamente às nove, mas muitas vezes só às nove e meia, não raro às dez. Nós, os turistas velhos e os muito, muito novos (famílias com bebés com menos 2 anos), tomamos banho sem bandeira, adivinhando pela ondulação e pela maré. A mulher das conchinhas nem toma banho nem se estende na areia, a praia é o seu ofício, ela é como os pássaros, deve detestar que lhe roubemos desta forma o areal. Toda ela era aliás um ser alado, se tivesse aberto os braços e voado eu não me teria admirado.
~CC~
A maré subiu uma primeira vez, obrigando a um recuo estratégico de alguns passos para trás. Depois começou a subir mais veloz, galgando a primeira elevação da praia com enorme facilidade, as ondas subiam e pareciam mansas mas tinham força suficiente. Cada um ergueu perto de si uma barreira tímida de areia, facilmente demolida pela vaga seguinte. E foi então, perante a possibilidade de um recuo tão grande que apenas sobrava a última duna, já com alguma vegetação, que despertaram engenheiros e engenheiras construindo covas e diques numa colaboração conjunta de sorrisos e palavras cúmplices. Usaram-se pés, mãos e baldes, cavando um fosso e depois uma barreira e depois um fosso. E foram crianças, homens e mulheres numa impressionante comunidade instantaneamente construída para salvar o areal e a tarde de Verão. Se as pessoas fossem sempre assim, o que não conseguiriam fazer.
E até houve um homem que não quis acordar a sua amada que debaixo do chapéu de sol dormiu uma prolongada sesta enquanto tudo isto acontecia, impressionou-me aquela capacidade de sono solto, tanto como a generosidade dele. Quando ela acordou, já a agua tinha recuado e ele apontou-lhe as construções que a tinham salvo, obra de tantos e dele também. No seu sorriso espantado espelhava-se a ignorância que tantos temos de quem trabalha para nós e nos é invisível.
Na manhã seguinte, muito cedo, maré vazia, o tractor alisava tudo, os diques, os tuneis e também as dunas que o recuo do mar tinha deixado. Santa ignorância, em vez de deixar os declives naturais, o tractor fazia uma espécie de rampas, muito mais fáceis para o mar galgar durante a tarde. Não fiquei para ver as possíveis construções que as pessoas muito provavelmente iriam tentar erguer, mas estou certa que seria uma obra mais difícil.
Fiquei a interrogar-me bastante sobre esta costa que tanto amamos e sobre a possibilidade (ou não) desta comunidade que ali se fez poder ser algo mais que a defesa de uma tarde de Verão.
~CC~
Nota: este título é uma homenagem a Marguerite Duras e ao seu livro Barragem contra o Pacífico, autora que muito li e admirei, talvez a única que mesmo inconscientemente tenha procurado imitar.
Reparei nelas pousadas duas a duas de cada lado da minha boca. São novas estas rugas. E são as que mais me custam, este adorno parece retirar a vitalidade dos lábios, tolher-me a palavra. São mais duras do que as da testa e das que estão em torno dos olhos. Atribuo a cada uma delas chatices que ultimamente me têm chegado, coisas de mal dizer que ainda me afectam e já devia encolher os ombros e ignorá-las, tenho de treinar mais e mais.
Mas na realidade é um artifício, envelheceria na mesma sem as sombras. E não me venham dizer que as rugas são bonitas e que o envelhecimento é bom. Aceitá-lo, integrá-lo, perceber o que traz de positivo é uma coisa, agora enaltecer a forma como o corpo nos deixa de responder e como o rosto perde vivacidade e cor, isso já não. Aceitar sim, como aceitamos outras coisas. Sabemos que não adianta renegar e que quem renega fica ainda pior com o seu rosto e pescoço esticado, o seu peito insuflado e inúmeros retoques que roubam a expressão. Não é o meu caminho.
Envelheci este Verão. Talvez por isso se me demore o olhar nos bolinhos de conchas e penas que ficam deixados na praia.
~CC~
Sentadas nas suas cadeiras de praia, muito magras, ainda antes de eu chegar, o que quer dizer antes das 9h. Ao início nem olhei, pensei que entre tantos estrangeiros seriam só mais duas sem paciência para deitar o corpinho na areia.
Mas depois chegou o sotaque, era puro algarvio como há muito não ouvia. E reparei. Dois chapéus de palha e dois fatos de banho daqueles dos anos setenta, não uma imitação, mas por certo ainda retirados de algum baú, ainda que não parecessem novos, estavam mesmo um pouco desbotados. E as cadeiras, as cadeiras também eram das primeiras que vi na praia, nada destas modernas que se enterram quase na areia. Nem queria acreditar quando uma delas disse que já tinha deixado os carapaus alimados para o almoço, depois era só cozer uma batatinha e uma salada. E explicou como fazia para os alimar. Ali entre todas as línguas do mundo, mulheres velhas com peitos postiços, novas com muto ginásio, mães jovens sempre atrás dos filhos, ali estavam aquelas duas mulheres tão serenas, tão livres, duas pérolas.
É bom, não é? Eu dantes nunca vinha. Agora apanho o vai e vem, passa mesmo à minha porta.
Aposto que naquele "dantes" estavam maridos já não moram neste mundo.
Estive quase para me convidar para os carapaus alimados.
~CC~