terça-feira, 30 de novembro de 2021

Teoria de Café

 

Gosto das teorias de café. Quando alguém decide que tem algo fantástico para explicar aos outros. Ultimamente já não há muito quem o faça. Antes das influencers, dos livros de auto-ajuda e do comentador especialista ou tudólogo eram estas as filosofias que tínhamos disponíveis para nos apoiar a destrinçar as coisas importantes da vida. O meu pai terá sido certamente um deles, lembro-me de o ver muitas vezes rodeado de pessoas.

Vejamos, como diz o senhor, porque se joga tão mau futebol hoje em dia. Alguma vez se conquistou qualidade sem quantidade? É a pergunta que ele deixa no ar. Os bons teóricos de café fazem perguntas antes de darem a resposta. Ninguém ousa responder, pelo contrário, ficam naquele silêncio de espera. O que fazem hoje as crianças quando o professor falta? Dantes (no seu tempo) a primeira coisa que se procurava era uma bola, agora é um telemóvel. Se não se pratica, como podem despertar talentos?

Embora não seja capaz de ajuizar a relação de causa-efeito estabelecida dada a minha diminuta atenção ao desporto em causa, algo ecoou em mim. Às vezes penso porque tenho tanta necessidade de voltar à Africa, esse apelo. Uma das razões são as crianças, não apenas por serem muitas, andarem em bandos em completa autonomia mas também pelo modo como brincam, pela alegria que nisso depositam. Como dizia o filósofo do café deste sábado, neste país, com tanta coisa bonita, ainda com fraldas já os pais usaram o ecrã do Telemóvel ou do Tablet como se de um brinquedo se tratasse. Contudo, a minha preocupação não incide como a dele na qualidade do futebol, antes na qualidade de outras coisas, nomeadamente na capacidade de entrar em relação.

~CC~




segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Campo de tremocilha


Gosto de tartarugas, do modo como sabem fechar-se na carapaça para se esconder do mundo, nada pode doer ali dentro, escondidas em si desligam de tudo e resistem.

Ao contrário delas, sempre senti a pele exposta, hipersensível, durante anos tive que usar anti- histamínicos para que ela pudesse suportar a aragem do vento, o frio da água, a rugosidade da areia. E ao mesmo tempo tudo me doía cá dentro.

Agora aprendo, sinto que sou capaz de usar a carapaça, não é ainda algo natural, é ainda um acrescento, algo que coloco para me defender, para não doer, para prosseguir. Mas resulta: amortece, defende, filtra. Preciso muito de paz, sinto que é o meu corpo que a pede. Quando começa a doer, fecho os olhos e é como se me deitasse num campo de tremocilha.

~CC~


quinta-feira, 25 de novembro de 2021

Tanto mar

 

Dois minutos depois de a ouvir falar eu já tinha colocado açúcar no meu modo de falar e me tornado uma moderadora muito mais doce. Depois da segunda comunicação em Português do Brasil eu já controlava a ferros o "né" que estava prestes a sair no final de cada frase. Quando acabou, suspeito que os colegas de Lisboa e Portalegre ficaram confusos sobre o lugar em que a moderadora se encontrava, quem era e o que fazia afinal ali. E tudo deve ter ficado pior quando terminei afirmando "um dia quem sabe tomamos um cafézinho juntos". Devia reformar-me antes de confundir lugares, pronúncias e horizontes. 

~CC~


terça-feira, 23 de novembro de 2021

Pesadelo

 

Tive um pesadelo esta noite. Um corpo chegava-se mais e mais a mim dentro da cama e eu afastava-me em total silêncio, queria protestar mas não conseguia, acordei na queda iminente. 

Há muito que me sinto a pele é como uma muralha que ergui, logo eu, que antes estremecia a qualquer toque, chegava a sentir-me febril. 

~CC~

segunda-feira, 22 de novembro de 2021

Sair por aí


Sou uma turista anti turista, enquanto eles fotografam a torre da Quinta da Regaleira, eu perco-me pelos tons de verde, castanho e amarelo desta natureza viva e deslumbrante. Só devemos ir a Sintra no Outono ou no Inverno, só aí podemos aspirar à magia do nevoeiro, da chuva, dos azuis mesclados do céu. Cada lugar tem a sua estação.

Também gosto de flores hibridas, a meio caminho entre flor, cacto e planta. As flores muito belas são sem história, demasiado óbvias, excessivamente conhecidas e facilmente amputadas do seu meio ambiente natural. 

Finalmente parei e respirei e, sobretudo, aspirei a alegria que reside nas promessas que a nós próprios fazemos e raramente cumprimos. E afinal é tão simples sair quase de mãos a abanar, deixar tudo em casa e ir por aí à procura da beleza que resta, saber que ao regressar no dia seguinte somos um coração lavado e brilhante.

~CC~


quinta-feira, 18 de novembro de 2021

Não tarda é Inverno, esse lugar que me assusta.

 

O tempo acelerou vertiginosamente. Mal dou pelos dias, de tal forma são rápidos, as horas nunca me chegam para as tarefas e tenho saudades de caminhar. A cada semana que termina, penso que na próxima será diferente mas há sempre uma emergência a agigantar-se e a interpor-se. Estas noites que de repente começaram a chegar tão precocemente ainda me baralham os sentidos. Não tarda é Inverno, esse lugar que me assusta.

Mas também é verdade que há sempre um momento realmente bonito dentro de cada semana. Na que passou foi com o filme "Três Andares" do Nanni Moretti que é um gigantesco edifício de ternura e redenção. Na terça, os vossos abraços, sempre um aconchego. Ontem, a tertúlia literária em torno do poema do José Luis Peixoto que me ensinou a perdoar todos os livros que emprestei e nunca me devolveram. 

Vou encontrando uma chave e depois outra e abrindo com ela uma coisa e bebendo essa luz.

~CC~




domingo, 14 de novembro de 2021

És já um ser vitorioso e luminoso

 

Um dia talvez possas saber como é o nosso coração poder bater mais forte por outro/a do que por nós mesmos. 

Saberás o que é esse desejo intenso de que tudo lhe corra bem, acompanhado da impotência de nada poder fazer (ou muito pouco) para que tal aconteça. É um contraste quase doloroso entre um bem querer tão absoluto e consciência do limite da nossa intervenção.

Este querer não é apenas do sangue ou do vínculo umbilical, não é apenas a matéria do que o tempo edificou e construiu em relação, é também já o que conquistaste da minha admiração como ser humano que és. Por isso, importa o que vai acontecer, mas ainda assim independentemente do que aconteça, tu já és um ser vitorioso e luminoso, se consideramos que a vitória é persistência, coragem, garra e vontade. O resultado é apenas uma parte, a caminhada é que nos diz.

~CC~


sexta-feira, 12 de novembro de 2021

Digo-me

 

Tenho vindo a adquirir muito lentamente a capacidade de dizer que não, de retroceder, de inverter a marcha.

Uma aprendizagem lenta que tenho a certeza que se adquirida mais cedo teria trazido mais luminosidade à minha vida. Escuto-me e sigo mais a voz que de dentro me diz não queres ir, não vás. As coisas que já fiz por obrigação, muito, muito além desse trivial que é limpar a casa ao fim de semana.

Diz-me o coração para parar e ir espreitar o estuário. É alimento, como pão.

~CC~


terça-feira, 9 de novembro de 2021

Terceira dose

 


A funcionária do centro de saúde em que a mais velha foi tomar a terceira dose não precisou das lições do Almirante para dominar com mestria a fila, as cadeiras, os papelinhos assinados e a ordem de entrada mal a porta do gabinete de enfermagem se abria. As enfermeiras nem vinham cá fora, ela tudo ordenava, sem grandes salamaleques mas com voz audível, bom humor e, sobretudo, competência. Às 11h20 era a hora marcada, tomou-a às 11h25m. Nenhum caos, nenhuma alteração ou confusão, tudo preciso, ordeiro e cordato. Apenas duas senhoras falavam pelos cotovelos, não se viam há dois anos, ela apenas brincou com elas, pedindo para falarem um pouco mais baixo.

Já agora aumentem-lhe o salário, não deve ganhar mais que o ordenado mínimo, sem direito a prémios nem holofotes.

~CC~

sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Arrefecimento nocturno


O arrefecimento nocturno parece chegar abruptamente mal o sol desce. O arrepio de frio que traz é o mesmo que se sente naquele minuto que irrompe um dia normal ou mesmo luminoso, uma sombra em que aquilo que nos falta se engradece para se apresentar como um tudo, mesmo que  seja só um pequeno nada. 

Ainda assim é mais fácil vestir o casaco do que preencher aquele buraquinho negro que ficou ali a querer afundar o coração no vácuo.

~CC~

terça-feira, 2 de novembro de 2021

Abraço

 

Dia de regresso à Catedral da fragilidade maior. Para onde foram as maravilhosas orquídeas? Tudo me parece agora mais despido, menos exuberante, menos luminoso, será que a passos largos se caminha para a tristeza que enche todos os hospitais?

Uma pontinha de saudade do meu médico intensivista, apeteceu-me subir para lhe dar um abraço. Mas contive, se todos o fizessem, que seria dele?! Ficaria afogado em abraços.

Poderia antes tê-lo dado aquele homem perdido, sozinho, confuso. Primeiro fiquei perplexa pois o médico dizia bem alto que tinha que ser operado com urgência, no máximo dentro de uma semana. Só depois percebi que ele nada entendia da nossa língua. Em Londres, em Londres, repetia ele às múltiplas perguntas sobre o cardiologista. Além do mal que o tinha levado até ali, também o seu coração fraquejava. Mesmo assim estava sereno, sem uma lágrima, respondendo a cada questão do médico com voz cordata.

Como é que alguém está sozinho numa situação daquelas? Como é que não há imediatamente alguém que se mobiliza lá dentro para o amparo, o cuidado? Toda a conversa médico-doente se resumiu a dados médicos, percebo a emergência e a incidência, mas o ser humano que vive naquele corpo, a quem pode recorrer? Até compreendo que não seja o médico/a a ligar-se a essa componente, sob pena de se deixar enlear em múltiplos sentimentos que o podem desfocar do essencial, pelo menos aqui, num lugar altamente especializado. Mas cada vez me convenço mais que outros profissionais deviam também residir nos hospitais, desses que podem dar abraços.

~CC~



segunda-feira, 1 de novembro de 2021

Call Center

 

O último contacto que ligou por parte do banco perguntou-me se eu tinha sonhos e queria concretizá-los. Não é uma forma original de perguntar se preciso de um empréstimo bancário?! Como eu lhe respondi se queria falar de sonhos ou de dinheiro e ele respondeu que estavam ligados, retorquindo eu que não necessariamente, ficámos para ali a falar. 

A moça que ligou esta Sexta indagou se tinha muitos espelhos em casa. Espelhos? A que propósito combinam com uma rede de Internet em permanente baixa? Combinam sim, disse ela, mas as pessoas não sabem. Tinha um sotaque do Norte que achei particularmente engraçado, gosto de sotaques, mostra-me que o país é maior que o meu quintal. Concordou que tendo apenas dois espelhos em casa não devia ser esse o motivo. Ficámos quase amigas.

Assim sendo, desisti de os colocar na lista vermelha dos "não atender". Além de que como tenho visão telefónica, vejo os cubículos dos quais eles ligam por um ordenado por certo baixo, pressionados pelo que nos têm que vender. Embora nessa última parte eu não possa ajudar muito.

~CC~