quinta-feira, 31 de outubro de 2024

Estar viva

 

Uma residência temporária em Lisboa para uma missão de trabalho. Faz tempo que não sentia este pulsar da grande cidade. Notas em alternado de fascínio e desilusão. 

Chego ao cair da noite e ando pelas avenidas cheias de luz e de gente, entonteço de estímulo visual e sonoro e sinto-me sem receios, é espantoso como nas cidades mais pequenas tudo desparece ao primeiro sinal da noite e aqui há tantas pessoas na rua, é bom caminhar assim com uma aragem de Outono. De repente quase tropeço num rapaz de braços estendidos como se fosse Jesus Cristo, está assim imóvel, parado, e não pede dinheiro. Um pouco adiante um sem abrigo prepara a cama na entrada de um prédio, mal lhe vejo o rosto tantas são as barbas. Tenho que ter cuidado com as ciclovias, a velocidade a que passam as trotinetes é muita, alguns carregam as famosas mochilas verdes com comida para distribuição. Desvaneço pouco a pouco o sorriso que trazia. 

Orgulhosa do meu passe e da minha opção pelos transportes públicos para deslocação na cidade, preparo-me para os autocarros. A primeira viagem é longa mas interessante, há tanto para ver e tão diferente. Quando entro nos lugares mais periféricos, a cidade muda e há menos comércio e mais gente cansada. No regresso não há apenas gente cansada, há gente entalada e mal há espaço para respirar. Custa-me a acreditar que se aguente isto todos os dias. Nas curvas mal me aguento de pé e já não sei equilibrar-me neste ondular brusco. Depois de conseguir um lugar já junto da paragem final, não percebo como é que os bancos não têm cintos pois numa paragem repentina quase embato no banco da frente. No dia seguinte tudo se repete, agora já com menos surpresa, ciente da minha condição de habitante temporária encho-me de paciência. No trajecto de volta entra um rapaz numa cadeira de rodas eléctrica, o motorista tem de sair para colocar a rampa e o ajudar, negoceiam a saída com muita naturalidade, volta-me o sorriso e a admiração e engulo o meu incómodo rendida à coragem daquele passageiro. 

Já é noite outra vez, saí duas paragens antes achando que era mais perto e podia caminhar, começa a chover e tiro o chapéu de chuva que não consigo abrir, abandono-o no caixote de lixo mais perto e sigo viagem. Penso porque é que não fico quieta e num lugar só e recompenso-me focando-me nas coisas que já aprendi e nas que aprenderei neste trabalho. Sinto que isso é estar viva.

~CC~

segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Esses que connosco voam

 


Na amizade, a atenção que darei a cada um será sempre inferior ao que cada um merecia. Ainda assim, tenho procurado traçar um caminho de ligação, escavando entre o colete de forças do trabalho, o espaço necessário para eles ficarem, ciente de que a sua permanência será parte integrante da minha felicidade. 

Em dias azuis sinto falta do bando, esses que connosco voam.

~CC~

sexta-feira, 25 de outubro de 2024

2007/15.000

 

A caixa de correio ultrapassou as 15.000 mensagens ali depositadas e amiúde lança avisos de encerramento por falta de espaço para mais. Num esforço para as apagar carreguei no botão que me levou a 2007. Não imaginava que o endereço tinha sido criado nesse ano. 

Chegaste tu em quase todas as mensagens desse ano, não sei se eras apenas tu que me escrevias ou se foram as tuas mensagens que não apaguei. Surpreendi-me com elas como se estivesse a lê-las pela primeira vez, não me lembrava delas com aquele grau de paixão, palavras tão cheias, redondas, inteiras e mesmo belas. Não há nelas nenhuma dúvida, nenhuma sombra, nenhum acanhamento, eras tu com o que eu agora considero uma surpreendente capacidade de amar, muito mais do que aquela que eu teria na altura. É tão bonito que custa usar esse botão "delete" e muito mais o "delete forever". Então carrego no outro botão e volto a 2024 e aos sinais de armazenamento quase cheio.

~CC~

quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Há liberdade na serra

Penduraram as personagens de uma vida nas árvores e viajam entre elas contando uma história com 50 anos. Passei por algumas daquelas histórias, daquelas personagens, vivi-as em alguns momentos em que a vida deles se cruzou com a minha. Mas é encantadora a maneira como com esta peça nos fazem rir de coisas sérias e quase chorar com coisas que nada têm de sério. Está ali tudo, 50 anos deste pequeno país onde toda a esperança decidiu morar um dia e depois foi morrendo pouco a pouco, voltando por vezes dentro de coisas grandes tão pequenas. Coisas como eles, um grupo de teatro alojado na improbabilidade de existir e persistir em meia dúzia de casas velhas num vale fora dos grandes centros urbanos.


(50 anos do Teatro o Bando, grande parte deles em Vale dos Barris, Palmela),

segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Caixas e caixinhas

 

A passagem era um pouco estreita para cabermos as duas, mas com jeito cabíamos. Mas ela fez questão de dizer: desculpe, eu sou gorducha. Acho que fiz um sorriso amarelo, na verdade nem foi difícil passarmos, conseguimos fazê-lo sem nos tocarmos. 

Nunca ninguém diria: pode passar à vontade que eu sou magra...ou desculpe que eu sou muito alto.

Malditas caixas em que nos encerram e nós nos encerramos.

~CC~

quinta-feira, 17 de outubro de 2024

À bolina

 

Sonhou uma família grande e teve-a. Não são todas as pessoas que têm quatro filhos, só talvez as muito corajosas. Contudo, a harmonia que idealizou, um grande piquenique com todos a partilhar a merenda, a rir e a brincar, esse ficou fora do postal.  Tenho muito carinho pelas suas lágrimas, entendo-a. 

Mas as famílias não são coisas que possamos sonhar, são mais barcos no mar aberto e devemos aprender a navegar à bolina. 

~CC~

terça-feira, 15 de outubro de 2024

Lisboa que desaparece

 

As cidades transformam-se perdendo mais e mais identidade, num movimento que parece impossível de travar. Um lugar torna-se sucesso mesmo sendo originalmente um território de armazéns fabris meio feio, é transformado em restaurantes, lojas de design e de moda. Do que ele era não sobrou um pequeno museu, uma homenagem, uma memória, tudo se varreu. Mas logo noutro ponto da cidade acontece exactamente o mesmo, e são os mesmos armazéns, a mesma lógica, quase as mesmas ementas. São também pessoas muito semelhantes os clientes, gente jovem de classe alta ou média alta, já seguros na vida ou desde sempre seguros.

Se fechar os olhos e os abrir de repente não sei onde estou, circulam empregados de origem asiática que mal falam e percebem inglês e muito menos português, mas sorriem sempre apesar dos seus olhos permanecerem tristes. As cervejas têm que ser artesanais, tem que se comer pouco ou não mostrar grande apetite e os pratos desiguais, assim como as cadeiras ou os bancos.

Fui a convite mas não já consigo sentir-me confortável nestes lugares. A minha Lisboa desaparece aos poucos.

~CC~

Nota: paga-se à entrada e colocam-nos uma pulseira, a partir daí podemos comer o que quisermos do buffet...pensando bem, alguma analogia com os processos fabris que em muito se basearam na desumanização.

sexta-feira, 11 de outubro de 2024

A nobel da Literatura

 

Senti-me muitos frustrada com o três últimos prémios nobel, não conhecia nem tinha lido nenhum daqueles autores.

Agora finalmente sim. Li a Vegetariana e o Livro Branco. Os livros mais estranhos que alguma vez li. Ainda hoje não consigo dizer se gostei ou não de cada um deles. Com a Vegetariana senti a mesma sensação de náusea que senti com o Ensaio sobre a Cegueira de Saramago, é como se a humanidade se tivesse perdido de si mesma, há uma tristeza colada a cada palavra e é como nos encerrassem num beco sem saída. Sofrer com os livros é uma coisa que me custa, não se trata de querer livros com histórias bonitas e finais felizes, é mais não conseguirmos encontrar empatia com aquele sofrimento, é essa a dificuldade. A mulher retratada na Vegetariana é um ser humano em absoluta queda e, no entanto, é difícil compreendê-la e amá-la. Já com o Livro Branco é de poesia que se trata, ainda que escrita em prosa. Mas e também hermético, gelado, um pouco amargo, escapa-se entre os dedos como água que corre. A princípio achei que era uma diferença cultural, que ela transporta na sua voz o Oriente e que o meu coração sabe ouvir melhor as vozes do Ocidente ou de África. Mas vendo bem, não é isso, ou pelo menos não é apenas isso, é mesmo a sua singularidade. 

Talvez a sua estranheza se chame originalidade e ela mereça mesmo este prémio, considero que sim.

~CC~


quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Um ano de saudade


 Minha senhora das plantas, das catatuas e das orquídeas, minha mãe.
Um ano de saudade.


Desculpa, hoje nem consigo ir aí para a limpeza e arranjos que te são devidos, minha senhora que muito prezavas a beleza.

~CC~

terça-feira, 8 de outubro de 2024

Sinal vermelho

 O carro parado ao lado do meu no sinal vermelho. Nem reparei, até que a janela desceu e ouvi os gritos delas: Professora! Professora. E acenavam e faziam uma grande festa, como se eu fosse uma amiga que há muito não viam. A minha colega ao meu lado estava espantada: aquelas alunas gostam muito de ti! Devolvi-lhes o cumprimento, um pouco mais comedida. 

Quem diria que eram aquelas (algumas) das mesmas que no ano passado me fizeram duvidar muitas vezes das minhas capacidades, hesitar nas estratégias e, dramatizando um pouco, refletir sobre o sentido da (minha) vida profissional.

Penso se um dia aprenderei a sofrer apenas com as coisas realmente importantes, se ainda vou a tempo. Mas vejo-me amiúde como alguém que precisa de um sinal vermelho para acordar.

~CC~




 

sexta-feira, 4 de outubro de 2024

O que é a poesia?!

 

Esta semana o cabaz de frutas e legumes que me chega da quinta trazia uma flor amarela.

- Olha, mandaram uma flor! Disse eu contente.

- Pois, não percebo, não se come nem se bebe! Disse ele com algum desdém.

E abriu-se ali logo um fosso.

Senti isto tantas vezes com algumas pessoas e muito próximas. Eu fazia um percurso para ir beber um café junto ao rio, perto de um jardim ou tão só num lugar com plantas e alguém me dizia que o supermercado era mais perto e mais barato. Era tão difícil explicar que poesia não é ler poemas ou escrevê-los, é a forma como se encara a vida e se é sensível ao mundo em redor. 

Está ali a poesia pousada na flor amarela dentro do cabaz.

~CC~

quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Muito a custo e sem chegar ao fim

 

A Ruivinha tão nova e singela, de olho azul, talvez por me ver ali a almoçar confortável numa mesa de um, pediu também uma mesa. De salientar que a especialidade da casa eram os hambúrgueres mas havia algumas outras opções, outra que escolhi e estava bem deliciosa. Ela demorou e demorou na escolha, embora a lista não fosse grande e optou pelo mais simples, apenas com queijo. Reparei no seu uso da língua castelhana, em vez da inglesa, que lhe parecia assentar melhor como (sua) língua nativa. Talvez se julgasse em Espanha ou talvez por simpatia tenha querido escolher a língua mais próxima da nossa. Numa eternidade de tempo, talvez uma hora ou mais, ela apenas debicou o seu repasto, tendo deixado rigorosamente metade no prato. Vi-lhe o esforço que parecia quase causar-lhe lágrimas. O empregado esforçou-se por não a incomodar, mas depois de tanto tempo lá lhe perguntou se já tinha terminado, uma vez que ela não tinha usado os talheres e não havia nenhum sinal da sua decisão. Envergonhada, disse que levava aquela metade, que estava bom mas não tinha fome. 

Acabei o meu livro, li-o numa hora*, exactamente o tempo que ela dedicou ao seu esforço de comer uma refeição. Pensei em como eu própria, por motivos de saúde, já tinha tido igual vergonha. No caso dela, a juventude não me parecia poder coincidir com uma doença como a minha, mas de modo igual, o seu desconforto. Apontaria qualquer distúrbio alimentar pois ela sentou-se para fazer uma refeição, simplesmente não conseguiu. Do mesmo modo que outros não conseguem parar de comer ou de beber. 

Tão nova, tão bonita, tão singela. Apeteceu-me abraçá-la. Mas claro que me impedi, não fosse levar um tabefe em espanhol.

~CC~

* o livro é o último do Gabriel Garcia Márquez, bem pequenino.