sábado, 29 de outubro de 2016

Madrugar



Há quem se deixe ficar pela noite dentro e acorde quando o dia já nasceu há muito.

Eu sempre madruguei. Estudava de manhã algum tempo antes de sair de casa. Quando trabalhava e estudava ao mesmo tempo, ainda no tempo da licenciatura, também o fazia, colocava o despertador para as cinco e meia da manhã e o pequeno almoço era entre os livros. Saía por volta das sete, sete e meia.

Fiz a minha tese de doutoramento a levantar-me às seis e a escrever grande parte entre as seis e as nove. É assim tarde para mudar. Acordo invariavelmente por volta das seis, seis e meia e raramente consigo dormir mais. Por isso vos posso dizer, caso o serviço interesse, a hora a que nasce o dia. Hoje às 7h30m começou a clarear, passados seis minutos a claridade já ganha à noite. Uns são felizes porque vão trabalhar e outros infelizes pelo mesmo motivo. Eu era geralmente feliz por o fazer e tento não ser infeliz agora por ter que parar.

Faço um chá e leio, leio tudo o que aparece, mas sobretudo o que antes nunca tive tempo para ler. Chaves para compreender o mundo estranho em que vivemos, acabei agora mesmo um pequeno ensaio escrito por um jovem, filho de amigos, que explicita a oposição entre sunitas e xiitas no médio oriente. Sou bastante indisciplinada, poderia aprofundar leituras mais relacionadas com a minha profissão, mas como basicamente tudo me interessa e não há coisa que não tenha relação com uma outra, tento viajar a partir do meu sofá.

~CC~




quarta-feira, 26 de outubro de 2016

O caçador que se rendeu ao rouxinol



O homem vivia encarcerado no perímetro urbano da cidade, metade do dia passado no balcão do banco, desfiando papelada que o enfastiava. O seu coração estava além, na serra. Bastava levantar os olhos, correr até à janela e via o seu recorte com clareza. Que pretexto pode arranjar um homem para se sentir carne e terra? A caça.

Então ele tornou-se caçador. Depressa surgiu o grupo e com eles a tasca, os casebres onde dormiam, as madrugadas frescas na serra. Depois já não era a presa nem a perseguição que o moviam mas as noites estreladas, o silêncio, o mover dos animais no restolho. Procurou ansiosamente uma casinha onde ficar aos fins de semana. Depois ampliou-a e os fins de semana já não faziam sentido, precisava de ficar a semana inteira.

Quando o rouxinol começou a cantar na sua janela pelo começo da noite, já nem sequer era um caçador, apenas um apaixonado pela serra. Um rouxinol trouxe outro, pelo início da Primavera e até ao final do Verão, podia ouvi-los todas as noites, como um concerto que a natureza trouxera só para si. Um dia, porém, o homem trouxe os amigos da cidade e eles trouxeram com eles as violas. Foi uma festa noite dentro, bebida, cantoria, barulho. Os rouxinóis não gostaram, abandonaram-lhe a janela. Cresceu no homem uma tristeza pequenina, todas as noites perguntava à mulher: será que não voltam mais? E ela respondia: um dia virão, vais ver.

E no ano seguinte, ali por volta de Maio, foi ela mesmo a primeira a ouvi-lo e correu a chamar o homem. A lágrima furtiva dele ficou entre os dois no longo abraço que deram. O homem que ela apertava entre os braços não era certamente o mesmo que conhecera, mas este, ainda o amava mais.


~CC~


PS. Há muito que recolho histórias dos lugares por onde passo, tomo às vezes notas, mas raramente tenho (tinha) tempo para as escrever. Esta é uma homenagem (como dizem nos filmes, baseada numa história verídica) aos dias que passei este Verão na serra de Montemuro.




domingo, 23 de outubro de 2016

A mulher bomba



Gostei muito do filme do sobre o Snowden, todos conhecemos vagamente a história mas ali tudo parece mais consistente e claro. Por isso o nome deste post é também, de certa forma, uma homenagem à coragem que teve. Corro assim o risco de ao colocar este título ser espiada por uma qualquer agência secreta ao serviço de qualquer governo, maus da fita são quase todos. Tenho uma caneta com uma frase sugestiva que me foi oferecida pelo SEGURA.NET que diz: na Internet nada se apaga. 

Com a minha bomba infusora de produtos de quimioterapia 24h ligada a mim, presa por um cinto que parece o que tradicionalmente os turistas usam para não serem roubados ou o que se usa nas caminhadas, de qualquer modo bastante foleiro, com fios que não se conseguem totalmente esconder e estão ligados a um cateter implantado abaixo da clavícula, posso a todo o momento no supermercado ou no cinema ser considerada uma mulher bomba. Para além do óbvio desconforto, claro que medicamente justificável, preparo-me para enfrentar o mundo com isto atrás, para os olhares de esguelha, os mais abertamente curiosos e até uma paragem por um segurança ou outro mais zeloso, na certeza porém de que se vivesse em Londres ou em Nova Iorque e andasse de metro teria provavelmente uma carruagem só para mim e poderia a qualquer momento ser barrada. Há que explicar ao mundo que nem todas as bombas rebentam ou são carregadas por terroristas, como eu, há milhares de pessoas a transportar medicamentos ligados às suas veias, que não podem deixar de correr por um minuto. 

Eu sou só uma mulher bomba infusora, o que tento rebentar está no meu interior, não no meu exterior, há muito que não acredito no recurso à violência para mudar o mundo, por muito que por vezes nos apeteça esbofetear alguém. Se virem por aí alguém com uns fiozinhos pendurados (de perto vê-se que não são eléctricos mas ao longe não) e um cinto atado à cintura, não corram a chamar o polícia mais perto.

~CC~







quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Sim, o tempo é relativo


Acontecem coisas boas dentro das más.

No dia 21 de Setembro foi a data da primeira consulta em que o resultado da biopsia indicava: carcinoma do estômago, ou para sermos mais precisos, da junção eso-gástrica. No dia 21 de Outubro, esta sexta feira, ou seja, apenas um mês depois iniciarei o primeiro tratamento de quimioterapia.

Todos correram contra o tempo numa imensa rede que envolveu amigos e familiares mas também gente mais ou menos desconhecida. Devo ter feito cerca de 10 exames num mês e uma laparoscopia que é considerada também uma operação cirúgica, é feita com anestesia geral mas que no meu caso serviu sobretudo como um exame e permitiu perceber que não havia metástases fora do estômago, a primeira das boas notícias a chegar. Poupo-vos à descrição dos exames, o pior de todos para mim é relativamente fácil para o resto das pessoas pois não provoca qualquer dor, trata-se da ressonância magnética, pela impossibilidade real que é estar dentro de um tubo daquela dimensão. Não é a dor o que mais custa, é um vazio de incredulidade que chega de quando em quanto, como se tudo isto fosse apenas um pesadelo, é a dificuldade de pronunciar coisas no futuro. Dantes pensava o futuro como coisa de anos, agora penso-o como o que gostava que acontecesse no Natal ou no Carnaval.

A minha vida intensamente preenchida de trabalho foi abruptamente interrompida e há coisas que sei que não recuperarei facilmente, é fácil o esquecimento. No entanto estou em paz relativamente a isso, fiz praticamente tudo o que queria fazer em termos profissionais e académicos. É recente o corte, ainda estou a ajudar quem ficou no meu lugar, a acabar coisas, ainda não me chegou o vazio, não sei se alguma vez chegará. Dizem que a debilidade em que ficamos nos ajuda a desligar de tudo, talvez.

Apenas um mês, para mim parece que passou muito tempo, que até eu já não sou bem eu mas outra em processo de transformação. Muita força não vem de mim mas do que os outros me dizem de mim, penso que se sou como eles dizem, se sou mesmo assim, então não poderei desiludi-los.

~CC~

terça-feira, 11 de outubro de 2016

Quê flô..


Sérgio Trefáut filmou os Lisboetas em 2004 mas nunca o tinha visto. Vi-o numa sessão cultural feita na minha escola. 

Estes lisboetas são os novos lisboetas, um conjunto impressionante de imigrantes, quase todos homens. Duas das personagens ficaram na minha memória, melhor, a doer no meu coração. Uma delas é mulher e é portuguesa e falarei dela depois. 

O outro é um rapaz que vende flores, rosas anémicas embrulhadas em plástico que ele tenta impingir a todos os casais e depois, com o desespero de nada vender, a qualquer pessoa, sozinha, acompanhada, de qualquer idade, qualquer nacionalidade. Quando a noite cai, junto ao rio, confessa a um pescador que não apanhou qualquer peixe, que ele também não vendeu qualquer flor. Lembrei-me de todas as vezes que eu também não comprei uma flor daquelas, o que me doeu mais no filme, nem é não comprarem mas sim o desprezo, a maior parte recusa-se a olhar para ele, a maior parte nem sequer diz: não obrigada(o). Não é um sentimento assistencialista que me move, afinal ele nada pede, ele vende um produto que ninguém quer. De repente vi o mundo pelos olhos tristes daquele jovem, os bolsos vazios depois de um dia de trabalho. Hei-de comprar uma daquelas rosas, por pouco que goste de rosas. Não salvarei todos os moços que apregoam "Quê flõ", talvez não faça mais do que tranquilizar um bocadinho a minha consciência, o meu mal estar. Mas é assim, somos seres imperfeitos, contraditórios, às vezes basta-nos fazer alguém um bocadinho mais feliz.

~CC~

domingo, 9 de outubro de 2016

Cabelos, perucas e chapéus


A princípio parece que tudo é uma batalha fácil, chegamos ali, cortamos o bocado doente e voltamos a ser o que éramos.

Depois vem mais um exame e mais outro. Nada parece ser já tão fácil. Depois chega a palavra danada: quimioterapia. As palavras constroem o mundo, ditam-no, Só esta disparou em mim como um choque eléctrico: afinal estou mesmo doente, isto não foi apenas um pesadelo da noite passada. Ocorreu-me uma asneira ou outra, das leves, já que as mais pesadas não aprendi a dizer, andaram tão longe da minha educação, que pena tenho disso agora, fazia-me bem soltar umas quantas, mas não sei.

Cortei o cabelo um bocadinho mais curto enquanto a cabeleireira trazia o catálogo das perucas, afinal há catálogos de tudo e nunca me imaginei a ver um destes. Por mais que queira não me imagino com cabelos artificiais. Pensei em pedir-lhe o catálogo de chapéus, mas talvez isso fosse noutra loja, talvez ela levasse a mal. E um catálogo de lenços para cabeças carecas, será que há? Dantes não imaginaria, mas agora acho que sim, alguém no mundo já deve ter inventado tal coisa.

Quando eu e o meu amor ainda mal nos conhecíamos mas já namorávamos fomos a Salamanca num Inverno muito frio. Comprei um chapéu e ele dizia que eu parecia uma russa, chamava-me Tatiana. Hei-de comprar uns tantos e inventar nomes para eles de acordo com a cor e o modelo, isto se o cabelo cair realmente, dantes era certo mas agora parece que varia de acordo com a corzinha malvada do líquido que nos põem na veia.

~CC~ 





quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Pelo menos pelos óculos



Por volta dos 45, os óculos tornaram-se inevitáveis para ver ao perto. Tenho apenas dois pares, uns ficam sempre em casa e outros andam comigo na mala desde há dois anos para cá. Perco amiúde os que ficam em casa, enquanto os da rua subsistem heroicamente face à minha tendência para deixar as coisas por aí. Se vivesse numa mansão, a explicação para tal era compreensível, muito canto para se ocultarem. Mas moro numa casa de bonecas, não percebo em que lugar se podem esconder. Estou em crer que afinal isto é um castelo e tem amplas galerias que comunicam com a cidade ou que há fantasminhas (pequenos como a casa) que se divertem à minha custa. 

Acresce que tenho especial carinho pelos de casa por os ter herdado da minha sobrinha que os trocou por uma operação à miopia e anda agora sem adereços deste tipo. Não fora outras coisas adicionais como a necessidade premente de um beijo, um abraço, este seria um motivo forte para a tua visita, já que da outra vez os encontraste depois de um desaparecimento de dois meses. 

~CC~

domingo, 2 de outubro de 2016

O imenso ruído do mundo


Hoje, no comboio Algarve Lisboa, uma mulher, pasme-se, alemã, conseguiu falar durante toda a viagem, toda, acompanhando o que dizia, em voz muito alta, com gestos efusivos. A companheira de viagem só tinha direito a uns monossílabos, acenos de cabeça e pequenas e curtas frases. Não sei se se trata de um contágio latino ou se definitivamente estamos enganados sobre os povos do mundo.

Muito mais grave foi a gritaria que ouvi nas duas últimas visitas ao hospital, um público, outro privado. Não, não eram os doentes a queixar-se das suas dores e maleitas, esses, pelo contrário, primavam pelo silêncio. Já o pessoal médico, enfermeiros e auxiliares falavam alto entre eles como se os doentes não existissem, contando tricas de trabalho, questões pessoais e tecendo revoltas contra chefes e afins. Faziam encomendas e contavam instrumentos e materiais em falta à nossa frente, como se simplesmente não existíssemos. Uma autêntica praça instalada nas salas de exame e internamento, como se estivessem nas suas próprias casas ou mesmo a negociar na feira, Para onde foi o silêncio que se fazia sentir nos hospitais? Aquele ambiente em que se falava sempre baixinho e se condenavam as visitas se faziam muito barulho? Lembro-me com clareza de ser assim. Se ao menos falassem connosco para nos aliviar do peso da angústia dos exames que vamos fazer, das doenças que temos, do incómodo que é aquele cortar repentino dos nossos quotidianos. Não, connosco, eles não falam. Pedi isso à enfermeira naquele dia: fale comigo, converse, isso distrai-me. A espera numa maca, já imobilizada, é das coisas que me custa mais e estava há muito nesse situação. Perguntei-lhe se trabalhava ali há muito tempo, se gostava, se...às tantas, ela, claramente incomodada, disse-me; é o seu marido que está lá fora? Vou chamá-lo, assim pode falar com ele. Antes não lhe tinha ocorrido dizer-lhe para entrar.

As coisas mudaram e para pior, instalou-se uma espécie de Anatomia de Grey misturada com novela mexicana. Foi assim, que com uma sedação claramente insuficiente, tudo fiquei a saber sobre os meninos do médico que me fez o exame e da preocupação com que estava em não chegar a horas de os ir buscar à natação.

Saudades do silêncio, do silêncio nos lugares, nas pessoas. Saudades de ouvir falar baixinho.

~CC~