sexta-feira, 30 de maio de 2025

Mulheres com lágrimas

Tantas reproduções que já tinha visto do Guernica, tantas. E ali diante do quadro real a dificuldade que tive em estancar as minhas lágrimas. Estava ali tudo, todos os gritos do mundo que me angustiam e enegrecem a beleza dos dias. 

E segui pela sala em frente para ficar quieta e muda diante das mulheres que choram. Mulheres que têm fome, mulheres que perderam filhos, mulheres que ficam para trás em tempo de guerra e fazem dos escombros as suas casas. Estavam ali as mulheres de Gaza, as mais meninas, as mais adultas, as mais velhas. E estava também eu e o meu corpo com partes em falta, esse corpo que tapado me parece aceitável e nu me envergonha, estava também ali o meu choro sem lágrimas na cama do hospital, nos amores que morreram, nos amores que não nascem. 

E depois vi a minha filha lá ao fundo numa sala, a olhar demoradamente os quadros e senti tanto orgulho nela, quando nos encontrámos no jardim já tinha o rosto limpo e provavelmente até sorria.



Mas as lágrimas, as lágrimas por vezes voltam.


~CC~

Nota: Quadros obviamente de Pablo Picasso.

quarta-feira, 28 de maio de 2025

Não é coisa que faça mal a ninguém...

 

Chamam-nos mocinhas naquele tom açucarado que trouxeram do outro lado do Atlântico. E convencem-nos com facilidade a endireitar as costas, a esticar as pernas e os braços, naquela ilusão de que os nossos corpos podem não ceder totalmente à gravidade. Mas não somos todas quase idosas ou idosos, há pessoas de todas as idades e algumas jovens, fico espantada com a sua opção por não escolherem os mega ginásios mas um pequeníssimo estúdio de Pilates. Dizem-se fisioterapeutas e eu acredito, mesmo sem ver o diploma, são criativas e bem dispostas, uma um pouco mais experiente que a outra. 

Talvez por ser a mais novinha, ela tenha pisado o risco. Até queria ser simpática, elogiou a senhora de meia idade, dizendo-lhe: a senhora tem um corpinho de fazer inveja, que cinturinha! Só que seguidamente: a senhora nunca foi mãe, pois não?! A senhora engasgou-se, respondeu baixinho: sou mãe, mas não biológica. Reparei no cabelo curto, na voz forte, no seu jeito masculino e talvez me engane mas pareceu-me uma orientação sexual predominante para pessoas do mesmo sexo. A pergunta já tinha sido um pouco invasiva, mas naquele caso talvez o tenha sido mais. A mocinha precisa de juntar à destreza física um pouco de psicologia, afinal não é coisa que faça mal a ninguém.

~CC~



quinta-feira, 22 de maio de 2025

Cozinhas decorativas

 

Desta vez os meus olhos pararam admirados no número de motas e bicicletas com uma caixa acoplada para levar comida, ligadas a várias plataformas, uns em andamento e outros parados, nas avenidas centrais de Lisboa. Concluo que grande parte das cozinhas em Lisboa se tornaram espaços meramente decorativos. Eis algo que a pandemia não levou, antes pelo contrário. 

Eu que ainda piquei cebola como um modo de puxar as lágrimas que não queriam descer e queimei muitas panelas enquanto trabalhava, tenho dificuldade em entender. Mas dificuldade em entender é algo tão abrangente que apenas tento que não domine toda a minha relação com o mundo.

~CC~


domingo, 18 de maio de 2025

Três laranjas, muita tristeza

 

É uma boa mercearia porque ele traz fruta da zona, queijos de várias partes do país e inúmeras outras coisas caseiras, embora em tempos tenha tido mais olhos que barriga e tenha querido abrir uma cadeia, com várias mercearias na cidade e uma loja de vinhos, tudo com o seu nome próprio em letras garrafais. O negócio correu mal e ficou apenas com a loja onde tudo começou. Mas sempre houve alguma coisa que me distanciou dele, uma forma de trato que embora cordial não me era próxima. Mas ontem tudo descambou.

A loja, mercê de ser quase hora de almoço estava sem ninguém, apenas eu e ele. Eu estava dentro da loja, quase na frente dele e a dar-lhe as coisas para pesar, mas ele mal olhava para mim, os olhos fitos no exterior, tive que me voltar para ver. Era um miúdo que andava lá fora a escolher fruta, talvez uns dez anos, negro. Já vi várias pessoas andarem lá fora a escolher fruta e nunca o tinha visto naquele controlo. Obviamente a desconfiança era muita. Mas o miúdo entrou e trazia três laranjas no saco para pesar. Ele disse que não lhe podia vender três laranjas, que o mínimo era um quilo. Inconcebível. Mas a criança foi encher o saco com mais laranjas e voltou para as pesar. Totalizou um euro e dez cêntimos e o miúdo estendeu uma nota de dez euros, ao que ele respondeu: não tenho troco. O miúdo em silêncio, nunca abriu a boca, saiu e deixou as laranjas. Eu saí também quase de imediato, indignada com tudo aquilo. 

Não encontrei o modo certo de interferir. Podia ter dito que tinha troco, mas efectivamente não tinha, se pagasse o valor, parecia que estava a dar uma esmola ao miúdo, o que ele obviamente não precisava. Simplesmente devia ter perguntado ao merceeiro porque não vendeu a fruta e que a criança tinha todo o direito de comprar apenas três laranjas. Não, isto não se passou há muito, muito tempo, foi mesmo em 2025.

Certo é que não volto lá mais.

~CC~


quarta-feira, 14 de maio de 2025

Notícias da cidade grande

 

Outra vez na cidade grande, estranho-a como se nunca tivesse cá vivido.

Logo pela manhã no café um casal jovem pediu duas saladas de fruta e uma garrafa de água, não estava a ver ninguém a fazer tal na minha cidade pequena.

Mais adiante um édredon mexeu-se ao cimo de umas escadas e assustei-me mas era só um sem abrigo a espreguiçar-se lá dentro.

E pela hora de almoço ia sufocando no centro comercial, nunca pensei que houvesse tanta gente a frequentá-lo, havia filas e praticamente todas as mesas estavam cheias, não sei de onde saíram tantas pessoas e ao fim de um bocado tive que sair, nem tomei café, incapaz de suportar tanto ruído e luz.

E há lojas e lojas cheias de coisas, primeiro entro maravilhada, mas depois é um excesso de cor, de estímulo e não consigo comprar nada.

Salva-se a beleza do edifício em que momentaneamente estou a trabalhar, acabadinho de restaurar, é como um oásis de verde e azul, tem as paredes cheias de rostos e de frases de escritores e é como se os jovens os respirassem. A jovem da saia branca que escreveu um poema sobre a sua saia branca e o leu para celebrar a liberdade de poder escolher a cor da sua saia, tinha um brilho tão grande nos olhos que iluminou também os meus.

~CC~




domingo, 11 de maio de 2025

Premir o botão

 


Quanta falta nos faz a insatisfação.

E uma pitada de humor...ai Onofre!

~CC~


sexta-feira, 9 de maio de 2025

Coração velho

 

O coração bate rápido, como aquele passarinho que a Primavera viu nascer. Mas com o passar dos dias, falta-lhe aquele alimento que permite ao passarinho ganhar asas e voar. Falta-lhe não só a segurança da mãe que traz o alimento, como a inocência de quem quer ver o mundo.

O meu coração é velho, assim é que eu sei. Demora a arrancar, têm êxtases momentâneos, encarquilha com a insegurança e desiste com facilidade. Ainda acende o que é uma constatação nova para a descrença que tinha nele. Mas um coração velho é parecido com esta Primavera, tão cheia de hesitações, de rasgos de sol logo afastados pela sombra e pela chuva, de uma temperatura que não se sustenta, de flores que tanto aparecem como se escondem. O meu coração é velho, da idade do meu corpo.

~CC~

quarta-feira, 7 de maio de 2025

Tão como nós

 

Titia, que é para fazer agora?

Falam assim os meninos, uma boa parte dos meninos que encontramos nas nossas escolas. Depois dele me fazer esta pergunta, sendo a primeira vez que me via na sua sala de aula, perguntei-lhe mais coisas. Se tinha memória da Bahia que o viu nascer, ligação com os avós ou com outra família do outro lado do Atlântico. A tudo respondeu que não. Guardava apenas na fala aquele sotaque, aquele jeito doce. São estes meninos que querem colocar na fronteira, aqui e noutros lugares? Não quero simplificar aquilo que é complexo, mas algures, umas gerações atrás, eramos nós estas crianças em múltiplos lugares deste mundo, tão filhos de ilegais quanto muitos dos que connosco se cruzam.


~CC~

 


domingo, 4 de maio de 2025

Foi contigo que aprendi a derrubar certos muros

 

Falta-me ligar-te e saber a ordem pela qual eu tinha chegado. Registavas com afinco os deveres afetivos dos teus filhos e as falhas magoavam-te, embora com o tempo também relevasses quando, pela distância, não me era possível fazer-te chegar um presente, nessa altura bastava a voz e um beijo. 

Sinto muitas e muitas vezes a tua falta e sei que contigo aprendi a valorizar as pessoas comuns, presas de tradições, rituais e amantes das pequenas coisas. Nunca me leste histórias mas contaste muitas histórias, nunca me falaste sobre o universo ou discorreste sobre os sentidos do mundo, as guerras ou as problemáticas políticas que nos contornam as vidas, mas ensinaste-me a fazer ervilhas com ovos, a votar em todas as eleições e a apreciar um café e um bolo de pastelaria. Levei tempo mas não esqueço nem esquecerei que foste tu que me destes os meios para saber falar com uma infinidade de gente diferente e apreciar. Não era preciso que tivessem feito a faculdade, soubessem falar bem, dominassem ou gostassem de alguma arte, lessem ou viajassem...

Foi contigo que aprendi a derrubar certos muros. 

~CC~

sexta-feira, 2 de maio de 2025

Esta Primavera

 

A Primavera não trouxe apenas aos meus olhos essa irritação vinda do pólen das ervas e das flores, ao meu coração chegaram estranhas borboletas, não consigo decifrar-lhe bem a cor, o rumo do voo, se irão pousar ou desaparecerão mal feche os olhos. Não sei dizer se este tremor que me abala o corpo e enfraquece as pernas não passará daquela ilusão que têm os mortos vivos, são descritas as melhoras da morte, ou seja a forma como aqueles que têm morte anunciada vivem dias antes um fulgor de vida como se tivessem renascido, dando a todos uma esperança de que estão regressados para afinal se despedirem. Creio que o amor também faz partidas destas, ameaça vir instalar-se para depois partir para sempre.


~CC~