domingo, 31 de maio de 2020

Será o amor?



Num lugar belo, costumo perguntar-me o que terá sentido o primeiro que o descobriu. Antes das casas, das pessoas e de todos pasmarmos, de enchermos os olhos com a beleza.

Tento situar-me nesse primeiro deslumbramento. Isso ajuda-me a encantar-me de novo mesmo quando já fui a esse lugar muitas vezes e o conheço bem. Gosto tanto de voltar aos lugares belos onde a meu modo fui sempre feliz. Pergunto-me se será isso o amor.

~CC~

sexta-feira, 29 de maio de 2020

Marcas



Da última vez que tirei o passaporte, os indicadores já tinham deixado de marcar a sua impressão digital, não houve meio nem máquina capaz. Lá ficaram os polegares. Agora, depois de tanto álcool gel, suponho que já nenhum dedo servirá. Parece-me um gesto cada vez mais absurdo e, no entanto ,repito-o como se já o tivesse mecanizado para sempre. 

E quando vejo alguém já não me ocorre logo um abraço ou um beijo, fico parada, meio inerte, sem saber o que fazer, não me apetece dar-lhe um cotovelo. 

De resto, sempre que posso, absorvo o sol numa esplanada, acompanhado de um abatanado. O medo abandonou-me, julgo que por cansaço, não se aguenta viver com ele por muito tempo. Mas sobraram outras coisas às quais procuro dar nome.

~CC~

quarta-feira, 27 de maio de 2020

Respirar


Debates e mais debates sobre o Ensino à Distância, agora rebaptizado ou rebaixado a Ensino Remoto de Emergência

Parece que os especialistas não gostaram de ver o seu objecto de estudo e de trabalho assim acessível ao povo em geral, afinal mais fácil do que parecia, pelo que se propõem a convencer-nos que não fizemos grande coisa. Já os saudosos do ensino presencial, que antes não se importavam de o considerar defunto, dizem agora que só através dele é possível criar afectos. Tantos disparates juntos. Entretenho-me a infernizá-los, quando eles dizem O nosso ensino é prático, necessitamos do presencial, eu digo mas presencial não é necessariamente prático. Quando eles dizem o EaD só funciona para ensino téorico, eu pergunto mas não é possível ensino prático não presencial

Raramente, muito raramente não me sinto como um peixinho fora de água em muitos e muitos fóruns de debate de presença obrigatória. Saio de lá e mergulho na minha pocinha de água, para respirar. 

Eu e os meus estudantes estamos bem, obrigada. Sabemos que não foi uma escolha mas uma solução, e vivemos bem com isso. Acenamos, sorrimos, cuidamos, e como docente continuo a corrigir, a pedir para melhorar e a exigir. A sério, não é muito complicado, não há heróis, nem vítimas.

~CC~

domingo, 24 de maio de 2020

Incertos dias



Trouxe uma mala cheia de roupa completamente desadequada, que saudades dos meus vestidos.

As botas ali à porta parecem um nado morto, saído de uma outra época, são a imagem do tempo difícil do confinamento, dos dias de chuva na aldeia. Cheguei aqui com o horizonte da temperatura máxima de 22 graus e de noites frias, à volta dos 15 graus.

Ontem, 30 graus às 22h, a boca seca como nos dias sufocantes de alguns Agostos. Uma noite em que sente a testa molhada.

Sinto amiúde que não tenho tempo para habituar-me, tanto impera o medo, como a falta dele, tanto chove granizo, como sufocamos com o calor. Preparo-me para uma coisa mas quando chego lá, essa coisa já não é o que parece, é já outra. A imprevisibilidade talvez seja afinal o que veio mesmo para ficar, este não saber como será a vida, a incerteza a infiltrar-se nas coisas. E quanto mais assim é, mais nos pedem planos e planos, como se as instituições estivessem presas dessa angústia do que não dominam. Mas talvez a aprendizagem tenha que ser outra.

~CC~

sábado, 23 de maio de 2020

O primeiro banho de mar



O primeiro banho de mar de cada ano é todos os anos um dia feliz.

Mas este que parecia longínquo, praticamente impossível, parte de um sonho daqueles dias de fechamento, assemelhou-se aquele sentimento que o homem deve ter tido quando pisou a lua, a de uma verdade que parece irreal.

E nem a água fria, nem as algas vermelhas, nem o tamanho das ondas, nem os vizinhos ali a dois metros impediram o corpo, pedia sal.

Crianças, muitas crianças. Oxalá os arcos-irís que pintaram possam proteger-nos. Oxalá saibamos.

~CC~

quinta-feira, 21 de maio de 2020

Dias curtos



À medida que os dias se foram tornando maiores, os meus dias ficaram mais e mais pequenos. 

À medida que o desconfinamento ia aumentando, o meu confinamento ia aumentando também. Desta vez voluntário, auto imposto e despido do receio de contágio. 

Afinal a recta final do ano lectivo continua a ser igual: um sufoco. Com a ideia ainda mais assustadora de que esta recta final vai ser mais longa, assemelhando-se mais a uma corrida de resistência do que a uma corrida de velocidade.

Ainda assim salva por um café na esplanada, uma breve visão do mar, o mimo de uma criança, a concretização de um abraço.

~CC~

segunda-feira, 18 de maio de 2020

Duelo



Sempre foi o meu lado cigarra que me aproximou do sul.

Os cafés abertos, as esplanadas ao dispor (com algum cuidado é certo) as velhotas a caminhar com vestidos brancos e as costas muito bronzeadas, este sol pendurado no céu como se todos os dias ficassem claros a partir de agora, claros e felizes.

É o branco, é a cal, é a proximidade a que está o mar.

É este amanhã que é já hoje e por isso é preciso viver.

É ela com a saia comprida, os lábios pintados e os óculos de sol estilosos, ela aos 92, pronta para sair de casa mesmo que o trajecto seja apenas de uma casa a outra.

Difícil é que a formiga está aqui ao lado, como uma sombra, pronta a arreganhar os dentes se a cigarra abusar.

~CC~

quinta-feira, 14 de maio de 2020

Assim não...



Deuses antigos que reinam em céus de adorados antepassados gregos e romanos que foram o nosso berço.

Deuses que de todas as religiões panteístas que habitam nos corações de todos os povos que as bebem com o leite materno.

Deus de todas as religiões monoteístas que deve ser o mesmo, se descontadas as divergências quanto aos messias e outros enviados do grande mestre.

Deus meu.

Todos vós, podem enviar a Primavera de volta?

Já estão a roubar-nos coisas a mais e assim não aguentamos.

Muito agradecida.

~CC~

terça-feira, 12 de maio de 2020

Foi sol a mais



Saímos quase sempre apenas uma hora por dia. 

É tudo quanto o teletrabalho, cada diz mais intenso, deixa.

Mas é uma hora que vale uma vida. Vamos quase sempre para o campo. Andamos um bocado sem destino. Deixamos o corpo absorver vitamina D deitadas na relva, numa laje de pedra, num poiso de madeira para quem se cansa no percurso.

Sonhamos com piqueniques, com praia, com férias. Sonhamos que nada disto existe e que não foi mais que um momento em que adormecemos e o sol fez das suas.

~CC~

domingo, 10 de maio de 2020

Dois pares, que felicidade!



Comecei a usar brincos depois dos quarenta. Fui furar as orelhas com uma criança e duas adolescentes. Estava com mais receio que elas e muita vergonha.

Com os colares fiz parelha antes dos quarenta, aí pelos trinta.

Os adereços sempre me atrapalharam, não tinha tempo nem disposição para eles e quando tentava uma pulseira ou um colar, logo os perdia.

Quando se é jovem não se precisa de nada, acreditamos que um bocadinho de beleza natural chega.

Agora é diferente. Parece que os brincos me dão alguma luz, já que os olhos brilham bem menos. Mas por defeito ou feitio continuo a perdê-los muito. De tal modo que a caixa dos brincos desencontrados já tem muito mais exemplares que a caixa dos brincos certos.

Mas ontem, ao aspirar a casa, encontrei dois pares, logo dos que mais gostava. Menos mau, não tenho que correr para uma loja como alguns correm sôfregos para os cabeleireiros.

Está uma pitadinha de luz garantida por mais algum tempo. 

~CC~




sábado, 9 de maio de 2020

Mão na massa


Eis outra vida que poderia ter. O pão que fiz durante a quarentena na aldeia saiu bem. Desde que regressei à cidade não voltei a fazer, falta-me o ambiente. Mas se há coisa que adoro é amassar, desde sempre que adoro cozinhar com as mãos. E de vez em quando lá se escapa uma mão directa a um pedaço de comida, uma patanisca, por exemplo, haverá melhor modo de as comer? 

Podia comprar um moinho e viver de fazer pão. Pão e Poesia.

~CC~


sexta-feira, 8 de maio de 2020

Sul



As saudades de ir conduzindo sempre para Sul.
Desse tempo só meu fruindo a paisagem.
Ainda haverá estevas?

~CC~

quinta-feira, 7 de maio de 2020

Uma cidade tendencialmente feliz



Vivo numa cidade tendencialmente feliz, não obstante a comunicação social a escolher em função das tragédias. Deve ser por ter um rio mais azul que todas as outras que têm rios azuis.

Por todo o lado espreitam pequenas festas, quase sempre de jovens ou homens adultos, quase sempre há cervejas. Foram muitos os instantâneos que captei nas duas semanas de caminhadas a tentar apanhar crepúsculos. Ontem havia uma festa de adolescentes com máscaras, tão engraçados, mas dois não aguentaram e já as usavam no pescoço.

As mulheres são mais comedidas, caminham em grupos de duas ou três. Se forem adolescentes encavalitam-se num banco com as cabeças nos joelhos umas das outras, ou noutra qualquer pose escultórica. Às aulas não querem voltar, isso era um mundo que ficou lá atrás.

Terão que guardar as praias com GNR montados a cavalo. Se até ontem eu própria ultrapassei uma barreira para entrar no parque, pareceu-me estúpido, os cabeleireiros abertos e o parque fechado. Há aqui um certo vírus de desobediência, de rebeldia, para além do outro. 

Há dois meses que não vou ao supermercado, irei hoje, provavelmente os dois metros serão tão mal medidos como da última vez, não sei se esta característica é por a cidade ser tendencialmente feliz ou ter problemas de Matemática.

~CC~

quarta-feira, 6 de maio de 2020

Estação


Vejo-os chegar pela manhã.

É verdade as carruagens já não andam vazias e voltou aquele chiar do comboio a chegar à estação.

Mas parecem saídos de um filme de terror.

Metade do rosto não se vê, e se alguns olham em frente, outros caminham de olhos no chão. Fico a vê-los a subir a rua por um momento, metade tira a máscara enquanto sobe, outra metade conserva-a. 

Hoje, na primeira tentativa de comprar pão no café vizinho, o empregado tirou a máscara ao perceber que a minha filha não estava a compreender o que dizia sobre a forma de pagamento.

Já não consigo avaliar comportamentos, eu própria terei sido provavelmente algumas vezes inconsistente. Sinto que estamos todos bastante cansados, cada um a seu modo e por diversas razões. Mas ao mesmo tempo é incrível a capacidade de adaptação, de resiliência. 

Penso nisso todas estas manhãs em que os vejo chegar e partir, uns a descer a rua, outros a subir, uns já com a máscara, outros prontos a colocá-la. Nestes anos todos não terei estado assim nunca a observá-los, presa da minha pressa matinal, quase sempre a sair cedo de casa.

Os comboios voltaram a partir e a chegar. Há nisso uma alegria contida por uma tristeza que se atravessa em cada rosto semi-coberto.

~CC~

segunda-feira, 4 de maio de 2020

E se for um jogo?


Contam-se pelos dedos os jogos de futebol que vi na vida.

Houve um célebre europeu em 2004 em que fiz algumas concessões, estava estupidamente apaixonada, sabemos o quanto o amor nos pode tornar ridículos.

Mas por estes dias só me vem à cabeça uma metáfora futebolística: e se o vírus contra-ataca? Parece que há muitos jogos que se decidem assim.

Estou a ver a cientista cá de casa a acenar a cabeça em tom de reprovação.

~CC~

domingo, 3 de maio de 2020

A matriarca



Os dias disto e daquilo são qualquer coisa simbólica, completamente canibalizada pelo comércio. Entendo sem paixão o carácter simbólico, desde sempre que a humanidade o respira. Desprezo um bocadinho o lado comercial, sobretudo porque se tornou excessivo, imperativo e nos subjugou, sem uma oferta é como se nada existisse. E não sou fã de rosas, a flor que mais circulará no dia de hoje.

Muitas vezes fui passar este dia com a minha mãe, outras não fui, aconteceu igual com a minha filha, sem dramas.

Pensei, contudo, em Janeiro, que a minha mãe jamais comemoraria este dia, vendo-a frágil e praticamente acamada. Mas é espantosa a sua capacidade de resistência. Ainda ontem me disse que já estava a tentar andar sem recorrer à bengala, alerto para o perigo, mas sei que pouco adianta, fará sempre o que bem entender. E ontem resolveu que havia de fazer um bolo para o dia de hoje, com a ajuda da neta mais velha que conseguiu ir para perto dela, após validação do seu tempo de quarentena. Não recorreu a receita já antiga, decorou-a a partir de um programa de televisão qualquer. Isto tudo com uma visão de cerca de 30% da normal, fruto de uma doença degenerativa que a tem levado progressivamente a ver menos e menos, o que lhe causa grande tristeza. Mas tristeza é nela coisa que não vem para ficar. Entre nós chamamos-lhe a matriarca e é com o seu nome que vive o whatsApp da família. Se foi uma mãe exemplar? Não, não foi. Foi humana, cheia de erros e imperfeições e coisas de que me envergonhei. Talvez me tenha deixado algumas marcas, daquelas que se exploram no divã do psicanalista. Mas não é isso viver? Não são isso as relações humanas? Hoje compreendo-a e nem preciso de perdão para as coisas menos boas, simplesmente elas fizeram parte do percurso.


~CC~


sábado, 2 de maio de 2020

Cada um faz o que pode...



Não arrumei as estantes, completamente inapropriadas para a quantidade de livros que tenho. Não arrumei os papéis, sobram-me pilhas do tempo em que havia impressoras, para além do livro de recibos enviado pelo hospital já faz mais de dois anos. As tampas das caixas plásticas continuam a não encontrar amiúde os seus destinatários, tal como as meias não encontram par. A pilha de chapéus para a minha anterior careca continua ali, sem destino. O sofá, a precisar de reforma urgente, ainda me abriga, não tenho onde comprar outro. A casa está cada vez mais pequena e agora, mais habitada, sempre em desalinho. Tenho inveja de quem aproveitou para arrumar, limpar, organizar e deixou a casa num brinco. 

Mas garanto-vos que tenho pensado bastante e sonhado muito.

~CC~

sexta-feira, 1 de maio de 2020

Os maiores


Quem é maior nunca o quis ser.
Estes dois estão no meu panteão, assim como esta canção.

O panteão onde constam agora os trabalhadores de máscara dos supermercados, das farmácias, dos hospitais, da recolha do lixo...os professores em casa a dar aulas, os que aceitaram ir para a telescola, os que receberam este mês pouco mais de metade do salário por as empresas estarem em lay-off, os artistas que fazem concertos sem bilheteira, disponíveis para receber o que cada um puder dar...






Estarei por aqui

Bom 1º de Maio.

~CC~