sábado, 30 de dezembro de 2023

Desejar 2024

 


Superar o vazio causado por todas as partidas, sobretudo a dela, levada pela morte. Quero que mais ninguém que me é essencial desapareça deste mundo. Mas não só os meus. Sim, quero usar essa palavra funda e negra que a todo o momento assombra os dias de quem mora dentro de guerras que não pediu nem desejou, juntas essas palavras guerra e morte tornam-se ainda mais pesadas e insuportáveis. Milito intimamente para que no novo ano elas desapareçam do horizonte e não assumam a banalidade do mal no diário que as notícias emitem, necessitava de uma militância mais pública em lugar que ainda não encontro. 

Superar o corpo e o que nele avança não rumo à velhice que é o que naturalmente o cobrirá, mas à doença que é o fantasma que o assombra. Possa a máquina não ter que disparar sobre ele anualmente três visões do seu interior para escrutínio médico, lançando dúvidas e hipóteses que ficam a marinar sombras nos dias e se condensam em noites mal dormidas.

Superar o medo de todos os abraços que possam ser voos quentes sobre a pele e desenhar presentes e futuros com a cor pantone do ano. Estão ainda em dívida abraços do ano anterior e não posso passar mais tempo sem os concretizar. Poder, quem sabe, até abraçar quem sendo família não conheço nem nunca conheci e está lá longe, do outro lado do Atlântico.

Superar o desenraizamento que ameaça fazer ruir todos os meus laços com as lugares e as pessoas, ser sempre eu mesma o suporte que permite o encontro, a bonança, o perdão e o riso. Fazer deste estuário o meu porto e dele sair rumo ao mundo.

Superar-me, desafiar-me, desconfortar-me, ir. Deitar-me num campo de tremocilha e respirar todas as estrelas a céu aberto.

~CC~





sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

Uma bela paisagem

 


Um homem lê na esplanada. Não lê jornais ou revistas, tem um livro nas mãos e passa devagar cada página. É raro, é belo de ver. Nem tenho coragem de tirar o telemóvel da mala e ver notícias ou mensagens, tão feio seria estragar com esse meu acto absolutamente vulgar aquele momento. Não consegui ver o que lia, o meu cepticismo sopra ao ouvido se calhar era um livro de autoajuda, o meu optimismo grita com um sorriso: era um ensaio ou um romance de qualidade. 

~CC~

quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Somos de um lugar

 


Eu nem gosto particularmente de fado. Mas gosto de pessoas que não têm medo de dizer onde moram, afinal todos somos de algum lugar, mesmo aqueles que sentem pertencer a mais do que um. Mas aqui não é apenas um lugar, é também uma classe social, também se nasce numa,


~CC~



domingo, 24 de dezembro de 2023

Advento XXI e XXII


 Uma pequena batota como nos calendários com chocolates em que quando a gula apertava se comiam dois chocolates em vez de um e depois se disfarçava tapando o buraquinho com a tampa. Quem é que aguenta tanta contenção e só come um chocolate cada dia, não dobrando ou triplicando e não saltando nenhum?

Assim juntei sábado e domingo num continum. Foi por um bom motivo. Andei à procura de uma árvore de natal e finamente encontrei-a. Acho que também vi a minha mãe na caturra de poupa amarela, um pássaro que ela mimou anos e que um dia lhe fugiu janela fora. E fiz o pudim de laranja com duas das minhas sobrinhas. Limpei uma lágrima da minha irmã. E rir, é tão bom rir com a minha filha e com o namorado por coisas de nada, é tão bom sermos tontos. 


Depois ofereceram-me um livro. E o que tinha? Todos estas crónicas. E assim se fez Natal 2023. 





sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

Advento (XX)

 

Em geral não tenho saudades de ser jovem. A não ser pela capacidade que tinha de me apaixonar perdidamente. Vamos perdendo essa voragem, esse poder de encantar e ser encantado, de dizer palavras sonoras, graves e grandes como "meu amor". Ficam a morrer-nos na boca pouco a pouco essas palavras de incêndio, trocadas por outras pequenas que não deixam marca.

Lembro-me daquele Natal em que recebi inesperadamente um postal daquele rapaz de olhos verdes que há muito eu seguia com intensidade desde a sala de aula até ao pátio e à saída da escola. Trocávamos timidamente poucas palavras naquele ambiente em tudo hostil a pessoas como nós. Ficava a ouvi-lo na aula de Filosofia, embevecida com tanta inteligência. Não achava que fosse algum dia reparar mesmo em mim, quanto mais deslumbrar-se. Quando o postal chegou, com tanta luz, tanta ternura, senti que os meus passos se tinham tornado dança e que se eu abrisse os braços conseguiria mesmo voar. É disso que tenho saudade.


~CC~


quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

Advento (XIX)

 

Ordenando as preferências em doce.

As filhoses da mãe, o pudim de laranja da mãe, a torta de cenoura da mãe.

Falta a mãe. Falta Natal. À volta deste vazio. A tentar dar a volta a este vazio.

~CC~


quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Advento (XVIII)

 

Não sei como absorvi tanta cultura judaico-cristã sem ter tido uma educação familiar consonante. A verdade é que o misticismo do meu pai foi talvez o factor preponderante antes de eu ter conseguido desconstruí-lo. Passei grande parte da minha vida a tentar ser o que comumente se chama "boa pessoa". Isso incluía grandes doses de generosidade, compreensão e compaixão. Andei perto do "dar a outra face". Custava-me compreender que alguém pudesse não gostar de mim sem nada ter eu feito que o justificasse. Demorei até conseguir perceber bem o verbo reciprocidade e mais ainda a exigir do outro o que eu sabia que dava. Enjoei de mim própria como pessoa boazinha. Só me arrependo disso não ter acontecido mais cedo. 

Esta semana tive a prova da minha cura.

No banco, uma fila enorme, muito tempo de espera. Ajudei uma série de pessoas mais idosas, é incrível como não há ninguém a apoiá-los, assim como duas cadeiras, apenas duas. Sentei uma senhora que coxeava numa cadeira do pessoal do guichet, já que havia cinco e apenas dois estavam a funcionar.  Tenho gosto nisso. Contudo, um dos senhores, também já idoso, culpava os emigrantes da longa espera, entupiam tudo, até os bancos. Não percebi a relação, até porque havia apenas duas mulheres brasileiras que tinham chegado depois dele. A sua retórica, curta e primária, era a que adivinham e rapidamente passou do banco para a saúde e para a educação, segundo ele, não deviam ter direito a nada. Fiz um esforço para não lhe responder. Pouco tempo depois veio perguntar-me qual era a minha senha, por acaso um número antes da dele. Perguntou-me se não me importava que fosse atendido antes de mim pois tinha muita pressa. Importo-me sim, disse eu, e não dei mais nenhuma explicação. Mostrou-me o cartão multibanco que estava danificado e seria simples, eu disse-lhe que o meu assunto era exactamente o mesmo (e era), por isso também seria simples. Chamem-me má pessoa se quiserem.

~CC~



terça-feira, 19 de dezembro de 2023

Advento(XVII)

 E ao décimo sete dia o vírus que andava a germinar instalou-se. Ainda não sei o seu nome mas deve rimar com o frio de Dezembro e com o cansaço. Não será o cansaço de criar a humanidade, mas é às vezes o cansaço da humanidade.

Eu que nem gosto de vinho apetecia-me uma taca dele quente, com especiarias, na ilusão de que perto da terra está a cura, uma vez que mais químico, menos químico, nada parece resultar. Espero que seja só dar tempo ao tempo, assim se curam as viroses de Inverno. E algum gengibre.

~CC~

segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

Advento (XVI)

 

Sublinhar que é a época das maças casanova, sem dúvida as minhas preferidas. Em geral não aparecem nos supermercados, procurem-nas nos mercados e mercearias.

São de polpa rija mas que se desfaz facilmente e têm um sabor agridoce, vermelho claro é o seu tom dominante mas por vezes têm uns laivos verdes. Desconheço-lhes a geografia de origem, muito menos se alguém se reclama como capital do dito fruto, coisa muito em voga. No Sul há.

Ao contrário de outras variedades só cruas são boas, não se devem assar ou cozer. Podia dedicar-lhes um poema, já que o Pablo Neruda fez uma ode à cebola. Vou pedir ao Alberto Caeiro, ele também gostava deste tipo de fruição.

~CC~

domingo, 17 de dezembro de 2023

Advento (XV)

 

Vive ainda hoje em mim a forma como me era tolhida a alegria deste tempo, o esforço que tinha que colocar em cada coisa para que ela fosse aprovada ou pelo menos não fosse rejeitada, acho que o medo me acompanhava à medida que cada dia se aproximava mais. Em pequenas coisas consegui avanços, bocados de luz, árvores de Natal interactivas que inventei, corredores de paz por onde entravam as crianças, depois já adolescentes e por fim adultas. Às vezes até parecia haver algum entusiamo na colaboração ou era eu simplesmente a ver pequenas vitórias, a valorizar o calor do beijo. Mas nunca consegui descontrair e ainda ando a aprender, talvez nunca recupere em pleno, pois nem sempre conseguimos voltar a ser quem éramos, talvez uma parte se tenha perdido para sempre no caminho. 

~CC~

sábado, 16 de dezembro de 2023

Advento XIV

 


Brincando, sempre de forma muito desalinhada, aos postais natalícios. Há quanto tempo não usava carimbos. A mestre deu ideias muito melhores para postais bonitinhos.

~CC~

quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

Advento (XXII)

 

Havia frango assado com muito piripiri, mesas no quintal por causa do calor, árvores do jardim cobertas de luzes de muitas cores. A família paterna era confusa, barulhenta, alegre, causavam-me algum receio por serem tão expansivos. Eu não só era a única criança alourada e branquinha como a única reservada.

O Pai Natal chegaria assim que nos escondêssemos, não nos era permitido vê-lo. Não me lembro exactamente dos presentes, talvez fossem livros, chocolates e por certo as bonecas com as quais pouco ou nada brincávamos. Depois de os abrirmos rapidamente voltaríamos a brincar à apanhada e às escondidas, coisa em que só usávamos os nossos corpos mal cobertos de roupa e os pés descalços.

A neve era uma coisa que eu não percebia o que era, não obstante se usar algodão para se fingir a sua existência.

Com o fim dos natais quentes também despareceu pouco a pouco aquela família alargada, sobrou dela a tendência que temos para elevar a voz, dizer disparates e gostar de piripiri. 

~CC~




quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

Advento (XXI)

 

Velas, gosto muito de velas. Comovem-me.

Talvez sejam o único ícone de Natal que verdadeiramente me toca. Se tiverem cheiro a laranja ou a canela ainda melhor.

Gosto de as acender, não gosto de as apagar. Se pudesse deixava que ardessem até se apagarem por si próprias, como se fossem uma vida que tem que ser contada e vivida até ao fim, sem se extinguir antes de por si própria o querer. Como um amor.

~CC~

terça-feira, 12 de dezembro de 2023

Advento (XX)

 

O mais cómico da quadra é esta mistura de símbolos. Temos um velhote gordo e barbudo de origens nórdicas que a coca-cola, originária do país mais anticomunista do mundo,  reinventou vestido de vermelho. É intrinsecamente generoso e voa com as suas renas pelo mundo inteiro, ainda que os adultos lhe tenham inventado faceta de juiz para julgar os mais e menos merecedores, as crianças têm esperança que a sua bondade prevaleça sobre tais sentenças. Nesta altura Jesus é ainda um menino nu e pobre, aquecido pelo bafo dos animais, não obstante ser filho do ser mais poderoso e dono de todo o universo. As crianças não podem admirá-lo com o mesmo fervor do bonacheirão Pai Natal, não obstante as figurinhas dos animais encaixadas no presépio merecerem a sua simpatia. 

Mas ali na loja do centro comercial tudo se resume à promoção de nesta altura se se comprar 3 peças e se pagar apenas duas e o corredor apresenta-se apinhado de lojas voláteis que antes não estavam lá, abeirei-me de uma delas e perguntei. Responderam que apenas tinham vindo "fazer o Natal", no final do mês seguiam viagem. A maior parte dos brinquedos são de péssima qualidade, integralmente feitos de plástico, irão rivalizar e vencer os peixes enquanto criaturas que habitam o fundo do mar.

São assim as minhas viagens do advento, entre o encanto e o pessimismo. o deslumbramento e o enjoo, ainda e sempre o desejo de observar o mundo, às vezes também de me enfiar nele e pensar menos.

~CC~


segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

Advento (IX)

 


É a época em que os pobres se sentem ainda mais pobres, os que estão sozinhos se sentem mais sozinhos, os tristes ficam mais tristes, os ansiosos entram em crise e os depressivos mais desistem. Isto acontece no meio das luzes mais incandescentes, das montras reluzentes, dos programas com ceias opulentas, dos filmes românticos que nos dizem que o amor acontece ou vai acontecer.

A consciência dessa tristeza no meio de um tempo que deve ser de alegria não me torna triste, só me torna menos ignorante.

~CC~

domingo, 10 de dezembro de 2023

Advento (VIII)

 

Na actualidade sou muito adversa a enfeites natalícios. A eleger alguma, seria esta a minha árvore de Natal. Quem sabe o que é?



~CC~

sábado, 9 de dezembro de 2023

Advento (VII)

 

É verdade, gastava-se excessivamente em presentes.

Ainda assim eu gostava de pensar em cada uma das pessoas a quem os dava. Por vezes também desesperei, sem tempo para os comprar e comprei qualquer coisa ou pedi que alguém comprasse. Não fui sempre fiel ao cuidado que cada um devia merecer-me.

Com a Troika chegou o "amigo secreto" à família. Rendi-me mas nunca gostei de tal coisa. Instalou-se como uma rotina e já não parece haver saída, ainda que faça propostas que permitam outras lógicas.

Hoje recebi a primeira prenda de Natal e a mais vulgar do mundo, uma caixa de bombons. Mas adorei porque foi inesperado e pelo contexto em que surgiu, acho que nem era bem para mim mas a pessoa resolveu dar-me e acho que o fez com carinho, num gesto repentino,

E lembrei-me que era um presente que costumava desejar muito, uma enorme caixa de bombons daquelas que as pastelarias exibiam nas prateleiras, com vários andares e muitas escolhas diferentes. As mais bonitas exibiam pinturas de cidades e as mais pirosas rosas ou outras flores, a marca mal se via, não era assim tão importante. Lembro-me em particular das da Versailles em Lisboa, de ficar a olhar para aquelas caixas que à época ainda se vendiam em "contos" e eram bem caras. As pastelarias pouco a pouco deixaram de as ter nas prateleiras, só as mais antigas o fazem. São os supermercados que as exibem em corredores inteiros mas já sem aquele fausto ou aquela roupagem. O mais curioso é que nem gosto particularmente de alguns recheios dos bombons, gosto é de pensar que não sei o que está dentro de cada um, da surpresa que cada sabor pode representar. Hoje as caixas mais vulgares são uniformes, todos com os mesmos bombons e por isso sem grande piada. 

E assim se perdeu no tempo aquele desejo, por certo tão consonante com a jovem pobre que fui. 

~CC~








sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

Advento (VI)

 

O dia hoje tem o nome dela. E era também dela a melhor receita de filhoses. Fê-las anos a fio até me dizer que já não conseguia. Aceitei o legado, as meninas cresceram a ajudar a estender a massa, divertiram-se a fazer diversos feitios, nomeadamente as letras iniciais de todos os nomes. Não é coisa que possa fazer agora neste apartamento pequenino, um dia talvez volte a fazê-las. Nenhumas de compra sabem ao mesmo.

~CC~


Receita: meio quilo de farinha, um copinho de aguardente, um copo de água com sal, sumo de uma laranja, uma colher bem cheia de margarina, uma colher bem cheia de banha. Mas na verdade a massa fala e tudo se põe a mais ou a menos de acordo com o que diz, é esse ponto que demora a apanhar. Estender com rolo da massa até ficar bem fina (essencial para que fiquem estaladiças) e depois cortar em diversos feitios, abrindo um ou dois cortes pelo meio. Fritar em óleo bem quente e depois misturar em açúcar e canela.

quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

Advento (V)

 

Maria não era a mãe de Jesus. José não era o pai. Esta foi portanto uma das mais famosas adopções da história da humanidade. A prova de que o amor não precisa de correr no mesmo sangue. 

Um dos magos (parece que eram sacerdotes e não reis) era já velho, outro era jovem e outro de meia idade. A pele de cada um era de cor diferente, consta que um um deles seria negro. Um trouxe um presente muito valioso, mas os outros nem tanto, eram simbólicos ou remédios (incenso e mirra). É um elogio da heterogeneidade e não da homogeneidade, do encontro entre pessoas diferentes que fazem um caminho em comum. E da sabedoria, afinal sabiam orientar-se pelas estrelas.

É provavelmente uma história inventada, ainda assim encontro-lhe a beleza que as instituições religiosas (todas elas) raramente souberam homenagear devidamente. Valores essenciais, contudo, em risco.

~CC~


quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

Advento (IV)

 


Aqui começou Dezembro.

Um ritual anual que a pandemia interrompeu mas que pouco a pouco fomos retomando. Estamos 17 anos mais velhos, as violas da casa foram abandonadas pelos adolescentes com as cordas partidas, quase impossível tocá-las. Apenas o bandolim permaneceu igual a si mesmo entoando a nossa canção de sempre: natal africano no coração do Alentejo. A minha escala não mudou, gosto de todos e muito especialmente de alguns. Foram a minha rede em anos difíceis e pouco a pouco a malha tornou-se mais e mais larga, ainda assim existe, mantém-se... e se persiste é por dela ainda precisarmos.

Igrejinha é lugar que se guardou na minha geografia de vida, estou grata.

~CC~




terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Advento (III)

 

Era um pinheirinho de Natal artificial com três palmos de altura que ela carregava de bolas, bonequinhos, algumas fitas e luzinhas. Fazia-o com desvelo, não obstante todos os anos avisar que já não o conseguiria fazer, eram as bolas que caiam das mãos e os olhos que já viam muito mal.

Foi assim nos últimos anos, depois dos pinheiros verdes e naturais que a ajudei a carregar anos a fio, muitas vezes trazendo-os nos autocarros cheios de gente. Era um cheiro inconfundível do qual ainda tenho saudades. Mas pouco a pouco fomos percebendo que não era o correcto.

Como é que pode ser Natal e ela não estar cá? Como é que pode ser Natal sem as suas filhoses, a sua torta de cenoura, o seu pudim de laranja? Como é que pode ser Natal sem ter que lhe comprar os postais e os envelopes onde deixava a nota de 20 euros para cada neto. Por fim dizia-me: compra também alguma coisa para ti. 

Como é que pode ser Natal sem ela?

~CC~

segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

Advento (II)

 

Tinha uma grande mochila às costas, podia ser um sem abrigo, um viajante, um caminhante. 

Eu vinha a descer as escadas do castelo e ele ia a subi-las. Fazia-o com muito mais ligeireza que eu, pois teria talvez metade da minha idade. O nosso olhar parou no mesmo obstáculo, uma folhas secas de palmeira completamente abandonadas ali há muito tempo, mas ainda muito bonitas. Tanto eu como ele poderíamos ter saltado por cima delas ou simplesmente contorná-las e seguir caminho. Mas antes que eu o fizesse, ele parou deslumbrado a vê-las. Depois carregou duas a duas encosta abaixo, depois voltou para buscar as outras duas. Eu encostei-me ao muro como se não fosse seguir adiante, só para assistir. 

Não percebi para onde as levou, talvez para um canto, um quintal, uma casa.  Só sei que parecia Jesus. Só porque eu imagino que Jesus, além de ter barbas, era alguém que se deslumbrava com coisas que nada valiam. 

~CC~

domingo, 3 de dezembro de 2023

Advento (I)

 

Maravilhoso tempo aquele. Nenhum enjoo, nenhuma indisposição, nenhum desejo louco de comer alguma coisa. Apenas uma paz doce, uma tranquilidade, um embalo do teu corpo dentro do meu. Não tive medo, de quando em quando uma pequena angústia em torno de te saber um bebé saudável, como deve acontecer com todas as mães. Todas as coisas muito mais relativas, até parar a meio o mestrado que então fazia. Uma barriga a crescer lentamente, nunca demasiado pesada, nunca demasiado incómoda.

Não te dei esperança como nome mas podia ter dado. Provavelmente nome que destetarias quase tanto como aquele que te dei. Continuo eu a adorá-lo.

~CC~




Nota: Do primeiro Domingo do mês de Dezembro até ao Domingo do seu nascimento, esse é o calendário do advento na religião católica. Não sou católica e sei que Jesus, se é que existiu não nasceu em Dezembro. Ao que venho então? Talvez à ideia do sagrado, é conceito que me fascina, uma ideia em erosão. E à coisa pequenina que é desembrulhar o tempo, dia a dia, com palavras.