segunda-feira, 25 de novembro de 2024

E ela nunca sorriu

 

Foi logo pela manhã, era cedo. Ainda há sítios que só aceitam dinheiro, é assim a jovem que me cuida dos cabelos, o terminal multibanco sai caro nos pequenos negócios. 

À minha frente uma senhora atrapalha-se, vejo que tenta uma e outra vez levantar dinheiro e não consegue, mas não quero aproximar-me de mais. Deve ter mais uns 10 anos do que eu, não é ainda uma pessoa muito idosa. Por fim, pede-me ajuda. Tento perceber o problema. Mas quando o percebo, invade-me uma tristeza que tento disfarçar. O multibanco no formato automático só tem quantias de 20 euros mas ela só tem 10 euros para levantar e não sabe como fazer. E precisa muito daqueles 10 euros, é a única coisa que verbaliza com clareza.

Noto que não é um pedido de dinheiro, ela não me está a pedir essa quantia, quer realmente tirá-la da caixa multibanco. Assim que o faço ela agradece e desaparece num ápice, envergonhada. É dia 25, ainda faltam uns quantos dias para o final do mês, indago-me como fará com apenas aquela quantia. E de repente é a minha mãe que a memória me traz, aquela magra nota que na minha infância o meu pai lhe deixava para as despesas do dia. E tudo o que depois passou, tantas dificuldades. E, no entanto, havia no rosto da minha mãe um sorriso que nunca se desvaneceu completamente, ao passo que esta senhora não sorriu quando me agradeceu, nunca sorriu.

~CC~


domingo, 24 de novembro de 2024

Olhai as cidades por onde passas


 

Mais uma jornada de itinerância. 

Retive a cidade molhada pela chuva e o modo como acordou com o céu mesclado no dia seguinte e solarenga no dia mais a seguir. Em todas essas nuances deletei-me a ver o modo como a água reflectia a luz. As cidades da água têm uma magia especial, é como se nelas os elementos vivessem num diálogo mais íntimo, fazendo com que nos sintamos mais parentes dos peixes e das aves. Não se conhece uma cidade se não se vive o seu amanhecer e o seu anoitecer, é esse o factor que permite ou não gerar a química. 

Não sei como há quem vá apenas para proferir a sua conferência ou comunicação, não se desvie um milímetro do anfiteatro e da universidade, vão e voltam no mesmo dia se for preciso e nada bebem nem comem e muito menos deambulam ou absorvem. O essencial das coisas está muitas vezes ao lado delas ou preso em algum cujo título não deixava adivinhar o tesouro que escondia. A academia está cada vez mais cinzenta e fechada sobre si própria ao passo que as cidades vibram, exultam e comunicam. Talvez isso explique a oferta aos oradores tenha sido três livros publicados pela universidade em vez de uma caixinha de doces típicos. 

Hei-de deixar um conselho aos que ficam ou aos que chegam: olhai as cidades por onde passas.

~CC~


segunda-feira, 18 de novembro de 2024

Provedor-mor de defuntos e ausentes

 

Se mais poética não existisse na vida de Camões, e tanta existe, chegaria este cargo que teve em Goa: provedor-mor de defuntos e ausentes.

Tinha prometido não comprar mais livros tão cedo. Mas se há um aspecto em que estou sempre a quebrar as minhas promessas é neste, é uma compulsão irresistível, sobretudo depois da participação numa sessão com o autor/a, o modo apaixonado como falam da sua obra impele-me sem escapatória. Não é tanto o ter a assinatura do autor, aliás durante muitos anos nunca pedia, achava até ridícula a fila que se fazia. Mas desta vez valeu a pena, atentem na imagem.






~CC~

sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Pinta-me de amarelo este cinzento

 

Subsistem pequenas flores amarelas, não obstante a chuva e o vento.

Subsistem pequenas borboletas brancas, não obstante o anúncio de um rigoroso Inverno. 

A borboleta branca pousa na flor amarela em beijo alimentício prolongado.

É destes detalhes que eu alimento os dias cinzentos, tentando trazer-lhes cor. É como se pedisse às flores e às borboletas que morassem um pouco dentro de mim. 



~CC~


quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Escolho o azul

 

As conquistas das mulheres que vieram antes de mim permitiram-me a imensa felicidade de ser livre, fazer as minhas escolhas, caminhar com o rosto direito, nunca atrás de ninguém. Eu continuei a luta delas com menor afinco, menor necessidade, agradecida e confiante. 

Até gosto de rosa, mas prefiro o azul, não me impeçam de escolher a cor que mais gosto. Sei que não é por aí que se faz o essencial mas quando se perde nas pequenas coisas, abre-se facilmente o caminho para as grandes. 

~CC~

domingo, 10 de novembro de 2024

Amigos de Novembro

 

Tinha dois amigos nascidos em Novembro, 

Ambos subterrâneos, sombrios e profundos

Amigos cortantes e gelados

Amigos calorosos e meigos 

Tão inteiros e genuínos


E agora só tenho um

E por isso estou muito mais sozinha

sem uma amiga de Novembro


Choro a sua ausência com os seus brincos postos nas minhas orelhas

E a memória das nossas cabeças rapadas pela doença

Ela haveria de corrigir letra por letra este poema 

E detectaria por certo o erro

Contido no uso do verbo passado para a referir


Amigos não morrem ainda que morram.

~CC~






sábado, 9 de novembro de 2024

De um lado e do seu avesso

 

Todos os dias da última semana apanhei o autocarro com o mesmo número, saí naquela paragem e desci aquela escada. Guardo tantas e tantas imagens destes dias, desta vida outra que temporariamente vivi. Absorvi do mundo tantas viagens aos mundos dos outros, esta foi mais uma.

No fim da escada todos os dias, pelas 8h30m,  aquele jovem de pele morena, pés nus nuns chinelos pretos, cigarro com cheiro muito intenso. Nunca nos olhámos e ainda assim soube que a tristeza era a sua morada.

Pelo contrário, a miúda negra vinda dos bairros difíceis e que mais participava nas aulas, disse-me com uma convicção duas vezes do seu tamanho: eu quero continuar a estudar, vou ser advogada como estas professoras que nos dão aulas. 

Há uma linha ténue e muito difícil de explicar entre quem consegue e não consegue, hesito muito nas explicações mais fáceis, há sempre um conjunto de coisas e não um milagre, nem a obra de uma pessoa única que aparece na vida de alguém ou tão só uma escola, um/a professor/a ou um desígnio. E ainda há que desembrulhar as palavras: conseguir, superar, ter êxito. A princípio aceitamos a sua simplicidade, estes miúdos diziam-nas na sua essência básica, só mais tarde vamos vendo tudo de um lado e do seu avesso ou pelo menos é o que me acontece.

~CC~



domingo, 3 de novembro de 2024

Imagens que não mentem

 

Este é um festival que pouco tenho frequentado, não obstante ser na minha cidade. Mas desta vez fui. 

Todos os filmes tinham a marca de vistoria da censura do Estado Novo e designavam-se como do Ministério da Propaganda. Os dois últimos não era narrados, não tinham som, tinham separadores com legendas, muito à imagem do cinema mudo. O que achei fabuloso era que as palavras continham uma mensagem associada ao regime, em que se enalteciam as qualidades do povo trabalhador e feliz e as imagens mostravam gente gasta, cansada, com roupas entrapadas e esquálida. É impressionante a degradação das casas, dos monumentos, das ruas, tudo mais cru e duro no preto e branco.

O último filme termina com uma mensagem sobre o bucolismo da paisagem mas o que vemos é uma velhota a sair de um casinhoto e avançar para a câmara que a vai enquadrando, terminando num zoom sobre os seus sapatos, mas estes nem são bem sapatos, são meio chinelos, estão rotos e nem sequer são um par. Ao contrário do que se vê hoje, imagens manipuladas a torto e a direito, ali são as imagens que não mentem. As palavras, essas tudo querem encobrir sem conseguir.

A música do Pedro Caldeira Cabral ajudou a ver tudo melhor.

~CC~