quarta-feira, 28 de junho de 2017

Vida dupla



Estou permanentemente a hesitar.

A proximidade da morte gerou em mim duas tendências contraditórias.

A primeira é desligar-me de tudo, resvalar para um cantinho em que ninguém me possa ferir, reduzindo cada coisa a uma insignificância, nada tem tanto valor assim que nos possa incomodar até ao nosso âmago. Suspiro para o lado, foco-me na beleza que as flores têm quando começa a primavera, na maravilha que é o primeiro banho de mar. 

A segunda é incomodar-me com tudo, vendo com clareza a paz podre em que se vive em inúmeros ângulos da vida, sobretudo o profissional. Como acontece com os mais os velhos, apetece-me perder os filtros, dizer umas verdades, partir a loiça. Mas ao contrário deles não tenho a certeza de que não me possa ferir com os cacos, acho que ao fazê-lo, sofrerei por certo.

E tenho feito um pouco das duas coisas, num movimento errático em busca de quem agora quero ser. Às vezes durmo muito mal a pensar nas verdades que tenho que dizer e a quem tenho que as dizer, como se fosse uma oportunidade única para o fazer antes que a doença possa voltar.  Algumas das injustiças e modos de agir das pessoas tocam-me directamente mas outras nem por isso, nem é por mim, é por um mundo mais digno. Outras vezes deixo-me dormir a pensar que estes pequenos monstros irão por certo sempre existir e que, por certo, enquanto pequeno Golias perderei todas as batalhas, ao contrário da história. Assim o melhor é beber o quanto posso da beleza do mundo - e bebo e adormeço e ando por aí feliz com as pequenas coisas. Por exemplo, que as cerejas existam e eu as possa comer e ficar com a boca doidamente vermelha delas.

Desde que voltei a trabalhar, a luta entre estas duas coisas é constante, um dia acordo uma e no dia seguinte acordo outra. Ao meu lado há quem diga para ser a lutadora ou para ser a desistente, justificando-o, ou quem nada diga, não sendo capaz de opinar. A maior parte das pessoas vive a vida sem pensar em que é ou quem quer ser, eu é que sempre fui insistente nas perguntas feitas a mim mesmo.

Desistência nem é bem o termo certo, é aquele deslizar para o nada que alguns chamam modo Zen. Para o fazer bem não devia sentir zanga mas eu sinto-a e afogo-a. Lutadora é mais o colocar-me na pega dos touros como se não houvesse amanhã. É um sentimento bom quando estamos lá, a adrenalina que a coragem dá, depois as consequências chegam com alguma dor.

As vidas duplas podem ser afinal só um modo interior de viver e ser. É agora assim.

~CC~






domingo, 25 de junho de 2017

A quinta vida



Vou no meu quinto (re)nascimento. Mia Couto inventaria uma palavra melhor para o regresso do abismo.

Salvei-me em criança de ser para sempre roubada à minha família, provavelmente morta, é uma história que pensamos só acontecer aos outros ou nos filmes. Só ter escapado é o aspecto mais intrigante de todos, levada e devolvida no mesmo dia. Ainda faz parte dos meus pesadelos, não conseguirei libertar-me completamente mas aos poucos fui deixando a pele. 

Tive dois acidentes graves de carro, um capotamento na autoestrada e um choque frontal com um animal de grande porte. Do primeiro a marca foi ligeira, do segundo um pouco menos, fico a suar quando vejo animais perto das estradas. Fisicamente intacta, ainda que do segundo possa decorrer a vértebra que galgou para cima de uma outra e me provoca a dor na perna direita.

Há uns anos, em missão de trabalho em Angola, salvei-me de uma salmonela feroz. Estive internada e a desintegrar-me, levei algum tempo a recuperar o equilíbrio, quase deixei de saber andar.

Mas só na quinta vida, esta que renasce depois de um tumor (ai a palavra "depois"), tenho que dizer quem sou. Toco no ombro de alguém ou digo olá sem que ele seja devolvido e é preciso dizer: sou a ~CC~, sei que estou muito diferente....abrem-se olhos e bocas de espanto, muitas vezes surge um sorriso, um pedido de desculpas, às vezes um abraço mais apertado. Sou eu, ainda sou eu.

~CC~






sexta-feira, 23 de junho de 2017

Paradoxo



Cada vez mais e mais programas de culinária de todas as formas e feitios, os livros também já enchem uma secção inteira em todas as livrarias e as estrelas michelin (ou deverei dizer eles) ascendem à categoria de estrelas mediáticas, brilhos que antes só pertenciam a actores e modelos. O blogue mais visto de todos creio ser um do mesmo teor (que antes rejeitava a publicidade mas agora se rendeu).

No entanto, nunca vi filas maiores à porta da casa de frangos e comida já pronta mais conhecida da minha cidade, uma loja modesta e pouco gourmet, antes bem tradicional, ninguém tira fotos com a embalagem na mão e coloca no facebook. 

O que fica entre o entre o que somos e o que queremos ser?

~CC~

terça-feira, 20 de junho de 2017

Convosco, nada mais



Góis, meu amor. O rio ceira, os açudes, o cerejal.

Há tantos anos, cerca de 30, sofri contigo o que agora sofres. Essa sensação absolutamente arrepiante do cerco do fogo, não há nada igual.

Antes de ti, outros pinhais, outras aldeias, animais perdidos, famílias sem norte, sem amanhã.

Resiste Góis, meu amor.

Convosco o meu coração dorido, nada mais.

~CC~

sexta-feira, 16 de junho de 2017

É fácil fazê-los felizes


Os dias de praia da infância, lembram-se?

Os meus, na infância, não foram muitos mas foram muito felizes, entre a Corimba e a Ilha do Mussulo, na cidade de Luanda que era para mim a mais bela do mundo. Dizer-vos da água límpida como um espelho, da sombra dos coqueiros, da inocência maior e mais completa.

Na adolescência, já em Portugal, torrei ao sol sem protector, hora proibida, descanso para duas horas de digestão ou o que quer que fosse. Roendo uma maçã quando calhava, uma sandes mista, água que se trazia de casa. Livre como um passarinho, mais próxima de uma miúda de rua, do que outra coisa qualquer. Quase sempre (mal ou bem) vigiada por uma irmã mais velha, tão ou mais livre que eu.

Hoje na praia uma criança dos seus cinco anos foi obrigada a tomar um banho que não queria. Primeiro a tentativa do pai que esbarrou nos berros bem altos do miúdo, depois a mãe, gloriosa, quiçá mais poderosa que o marido, levou-o até à agua enquanto ele esbracejava e chorava e mergulhou-o. Depois, ainda choroso, foi obrigado a comer uma sandes e umas batatas fritas de pacote. Uma educação esmerada, também em termos alimentares. Por todo o lado muitos e muitos brinquedos de plástico, nos quais não pegou uma única vez. Como se recordará esta criança dos seus dias de praia na infância? 

Eu também resisti a entrar na água, estava fria, fi-lo depois, só quando me apeteceu. Muitas dias não consigo entrar, ninguém me obriga, os banhos de mar devem ser qualquer coisa da vontade de cada um. Eu tenho medo das ondas, cada vez mais.

Fazer as crianças felizes parece-me tão fácil, fazê-las infelizes parece-me tão difícil, como o conseguem num dia maravilhoso de (quase) Verão.?

~CC~



segunda-feira, 12 de junho de 2017

Uma aldeia



Cada vez que estou uns dias numa aldeia, fico com a certeza que precisava de uma para morar. Precisava do silêncio e das noites cheias de estrelas, dos passeios matinais ou de fim de tarde, de me demorar a olhar as árvores, de saber de cor as rotinas dos vizinhos como eles ficariam a saber a minha. De ter a horta e as árvores de fruto, no limite um cão, depois de lhes perder o medo, mas nunca temos medo dos nossos próprios cães. Sim, uma aldeia que não fosse muito longe do mar, que não fosse muito longe de uma cidade onde pudesse ir ao café, ao cinema e a concertos, afinal são esses os fios que me ligam às cidades.

E já não é romantismo, sei também dos contra. Saberem-nos a vida de cor, separar os que são de fora dos que são de dentro e ser de dentro é ter nascido lá, ou pelos menos os pais terem nascido lá. É por vezes nos sentirmos como numa ilha, com algum sufoco. Mas respiro menos nas cidades cheias de prédios e cheiro a gasóleo, nestes muros que me parecem cada vez mais altos a tapar horizontes, na estreiteza de vistas, nos vizinhos estranhos.

Quero uma aldeia para me mudar a vida e desespero por ela não acontecer, por não a vislumbrar no meu horizonte.

~CC~

sexta-feira, 9 de junho de 2017

No reino da cidadania



Hesitei em tirar a senha prioritária e acabei por não o fazer, mesmo sabendo que iria esperar mais. E fiz bem, atendendo a que a loja do cidadão é um observatório humano, não devemos ter pressa.

Se pudesse tinha gravado em vídeo aquele casal cigano, mesmo considerando que como grávida, ela tinha tirado a senha prioritária depois de mim e sido atendida à minha frente, mea culpa. Ele deu-lhe a cadeira para ela se sentar, fez-lhe festas e abraçou-a enquanto era atendida e deixou-a falar sem interromper, só falava quando ela se virava para ele e o questionava. Demoraram muito tempo e nunca perderam a calma, a simpatia, a harmonia. Cidadãos de primeira!

Já foi mais difícil encarar a situação do homem negro que não falava português e que pura e simplesmente não percebia o que a funcionária lhe estava a explicar, ela dizia que as senhas para o pedido específico que ele tinha que fazer já tinham esgotado, que teria que voltar outro dia, ele continuava a mostrar-lhe os documentos, tentando explicar-lhe com gestos o que queria, de alguma forma com desespero, embora calmo. Demorou muito tempo esta cena confrangedora.  

Quando chegou a minha vez, a funcionária perguntou-me se já tinha preenchido o impresso, ora eu tinha estado ali uma hora mas desconhecia que era necessário ter previamente um impresso, nenhuma informação sobre isso estava disponível. Temi pelo "volte amanhã", mas ela acedeu a esperar. O que veio a seguir teve sorte pior, enganara-se na senha e tinha que voltar a tirar outra senha, tendo sido encorajado da seguinte forma " Isso é no IMT, tem que tirar outra senha, e prepare-se, são cerca de quatro horas de espera". 

Não sei bem de que cidadão são estas lojas nem porque se chamam lojas, sempre quis acreditar que eram um avanço face aos serviços tradicionais, mas hoje tenho algumas dúvidas.

~CC~




quarta-feira, 7 de junho de 2017

Outra vez



Outra vez a aula de yoga centrada praticamente só no relaxamento.

Outra vez a viagem à infância, à felicidade do brincar. Consegui lembrar-me das bolas de sabão feitas em cana de mamão, das mangas sumarentas apanhadas no quintal, das comidas exóticas que as bonecas comiam, do tio da TAP que trazia magníficos chocolates...o problema é que também me lembrei dos carreiros de formigas desviados do seu caminho, dos objectos colocados no meio da rua e puxados pela linha de pesca assim que as pessoas os iam apanhar, dos duelos que o meu irmão fazia com o galo...pensamentos pouco zen, pouco adaptados à aula, ao lado. Não sei o que fazer comigo...

~CC~

terça-feira, 6 de junho de 2017

Um coração a correr à solta



Quase tudo igual, só eu estou diferente. Por fora comentam muito, é a magreza a que chamam elegância, a cor do cabelo que até perguntam se era igual àquela com que nasci. 

Por dentro não sabem, não se vê.

Nunca fui quieta nem calada, mas agora há uma revolução interior. Cansei-me de usar filtros. Apetece gritar e gritamos mesmo. Perdi o medo de me indignar em voz alta. Todos me dizem para não me irritar, que me fará mal. Descubro, contudo, que não é a irritação que me faz pior, é abafá-la. 

Devolvem-nos a vida e é isto, um coração a correr à solta.

~CC~


sexta-feira, 2 de junho de 2017

Um selo?!



A Ana deu-me um selo, ou melhor, um selinho, estes selinhos costumam empreender a sua viagem a partir de um qualquer sítio de origem. A Ana é uma irmã gémea que descobri aqui, tem quase tudo o que eu tenho, desde a idade ao dia de nascimento, mas não matou a sua parte espiritual como eu matei depois de militar, muito nova, numa organização séria da coisa. Por isso quando a leio é como essa parte de mim cheia de deuses e teias místicas com o universo, nascesses algures naquele lugar em que a deixei. E há também essa coisa de ser um ser humano magnífico. Nunca fui dada a correntes, só mesmo a Ana para me fazer participar.

Se eu quisesse ser alguém nos blogues escolhia alguém nas antípodas de nós mas ainda assim também com alguma coisa de nós. Escolho-a pelo absoluto desassombro da escrita, pela coragem, por se estar nas tintas para os blogues e, em geral, para o que pensam dela. Escolhia esta Ana, que nem deve saber que existo, que existimos.

Por uma razão completamente diferente, designadamente por  ter sido a única pessoa dos blogues que conheci pessoalmente, pela persistência dos nossos contactos ao longo dos anos, pela paixão que nutre pela escrita, poesia e poetas, nomeadamente pelo José Gomes Ferreira que quase só ela costuma colocar por aqui, escolho a Deep do Letras são papéis. Ela, sim, sei que poderá dar continuidade a este desafio.

Nos cinco que faltam estão todos os laços, todos os outros que frequento, comento, gosto, que foram e vão entrando pela vidinha dentro, muitos já nomeados por outros. Não sou capaz de mais escolhas, fazer duas já foi muito difícil.

Perdoem-me que faça uma parte da coisa não fazendo outra, eu sou mesmo assim, quase só faço o que me apetece, sobretudo aqui.

~CC~