terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Desejar



A palavra desejar só tem um s.

Os velhotes costumam nunca se esquecer dele, já nós, mais novos, nem tanto...e quando muito novos até nos parece ridículo desejá-lo.

Mas de todos os meus desejos esse s que dantes era trivial e às vezes até me esquecia dele é agora tão mas tão grande. A consciência plena de que sem ele, sem a palavra que por ele começa, nada mais existe e é possível.

Pois a minha lista para o novo ano é desta vez bem pequena e só tem essa palavra de cinco letras começada por s. Ao contrário da maioria dos desejos pelos quais nós próprios podemos fazer muito em vez de esperar que aconteçam, eu posso fazer alguma coisa, mas não muito. 

Vou tentar esse pouco com muita força.


~CC~









sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

Abraçar


Como vos dizer da infância.

Todos os natais da infância foram imensamente felizes. Por estar calor, pelos churrascos com piri-piri, pelas árvores da rua enfeitadas com cores, todas as cores possíveis. E o pai natal ia a África. O menino jesus, esse era mais distante, não nos visitava e missas do galo não combinavam com a roupa leve, nem tão pouco com as cervejas geladas que os adultos bebiam.

Soube pela primeira vez que o Natal podia ser também triste quando o passei pela primeira vez em Portugal. A casa despida, os colchões no chão, uma mesa pequenina de fórmica, os nossos haveres a caber todos num canto, a pobreza, o abismo. E o pai longe, muito longe. Mas foi a tristeza que me ensinou a procurar a alegria. Tudo aconteceu nesse Natal. Resume-se aí a batalha de uma família inteira: uma mãe, quatro filhos. Chegou uma caixa do outro lado do mundo com enfeites natalícios, lindos e maravilhosos enfeites. E mesmo sem árvore, enfeitámos toda a casa, colámos fitas nas paredes e pendurámos bolas onde era possível. Tudo se assemelhava a um carnaval natalício mas foi nesse vermelho dourado que rimos. Se calhar também chorámos. Nunca me esqueci daquele Natal, tenho dele uma cicatriz interior. E quando olho hoje para as cicatrizes que a minha pele tem das últimas cirurgias, vejo como elas não são nada quando comparadas com a outra,

Desde aí que basicamente só tenho procurado e valorizado uma coisa a cada Natal; tentar que os laços não se deslacem, que a cola não descole, que alguns sabores permaneçam, que os abraços aconteçam.

Abracem alguém e sintam que é tudo o que precisam.

A cada um de vós um abraço também.

~CC~







sábado, 16 de dezembro de 2017

Isto sim




Isto sim, é música para crianças (apesar deles terem dito que não a pensaram como tal e se calhar por isso mesmo). Confesso que à excepção do cancioneiro tradicional, tenho uma especial embirração com as canções feitas para crianças, a maior parte trata-as como patetas.

~CC~


sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

A sociedade dos magros



Oiço-os com frequência: estás tão elegante! Quase sempre sorrio, tranquila nos meus 44 quilos, sem dizer nada. Que tenha passado do M/L ao S e passado a encarar com alguma estranheza o meu próprio corpo não lhes diz respeito. Não sofria muito antes com uns quilinhos a mais, não sofro agora muito com uns quilinhos a menos. O corpo é importante mas é muito mais o que vive lá dentro.

Hoje, contudo, um colega foi longe de mais, afirmou; nunca estiveste tão elegante, olha que há males que vêm por bem! Não pude deixar passar em branco tal disparate. E respondi-lhe que preferia não ter tido a doença e ter os quilinhos a mais. Mas fiquei a pensar neste enaltecimento constante da magreza, tão paradoxal com os milhares de páginas ocupados a falar de comida, os canais dedicados à gastronomia e o índice de peso da parte ocidental da humanidade sempre a crescer. E a pensar no sofrimento, não só dos muito gordos mas mesmo dos mais gordinhos e gordinhas, e sabemos que parte da responsabilidade nem sempre é deles, há pessoas a comer o mesmo com resultados muito diferentes.

O meu corpo está magro mas não está bonito e disso tenho plena consciência, foi com esforço, talvez muito mais esforço que este ano me enfiei num fato de banho para ir à praia. Aliás não sei se os corpos magros são, só por isso, belos. Também não são necessariamente saudáveis os corpos magros, sei agora o quão difícil é estar sentada muito tempo, como dói esbarrar nas coisas, como custa pegar num saco mais pesado. Sinto os meus ossos à flor da pele, sobretudo os das costelas e das clavículas e gostava, como antes, de os sentir mais resguardados por uma camada protectora. Que sabendo a razão pela qual eu perdi peso as pessoas possam elogiar-me como se eu tivesse feito uma dieta maravilhosa é espantoso. Algumas moderam-se e dizem simplesmente que estou bem assim, que não me preocupe, que tenho bom aspecto, é uma nuance que faz toda a diferença.

~CC~



quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

Não perder o rumo


Aqueles olhares cúmplices e amigos que se vão tendo no interstício já célere dos dias, uma voz que chega, um sms de cuidado, são esses que se por um lado reconhecem a minha condição de fragilidade, também me dão ânimo para prosseguir. Esta semana uma dor desconhecida veio atrapalhar um bocadinho a vida, dantes não ligaria, agora qualquer dor se assemelha a um possível regresso do bicho mau. Foi passando, ainda espreita às vezes.

Espero não me esquecer que posso parar a meio da semana, simplesmente desligar e ir jantar e ver um filme com uma amiga, como fiz ontem. São coisas assim que não posso voltar a perder.

E a capacidade de furar o esquema da rotina para marcar um passeio, seja longe ou perto.

Fiz pequenas mudanças na minha vida, desenhando mais e outras prioridades e luto para não perder esse rumo.

~CC~

domingo, 10 de dezembro de 2017

Em acumulação


Escrevo a lista antes de ir às compras para não me esquecer de nada. E não esqueço. O pior é o que trago a mais. 

Coisas que acumulo: coentros, hortelã, tomate, espinafres se for ao mercado de rua. Se for ao supermercado: sacos do lixo, pasta de dentes, iogurtes. Se for à loja biológica: chá de perpétua roxa, manteiga de amendoim, bolachas de aveia. 

Quando vou guardar as coisas e percebo que as tenho em duplicado, fico aparvalhada. Depois rio-me e penso: estas coisas fazem-me mesmo muita falta.

Tenho que escrever uma lista ao inverso: o que não é preciso comprar.

~CC~

quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

Num gigantesco e agora global reality show


O homem vive num gigantesco e agora global reality show. Quando nenhuma luz, nenhuma controvérsia, nenhum conflito o atira para a ribalta, ele definha, deprime, inquieta-se. E assim que o mundo se agita à sua volta ele rejubila, cintila, ri. Trata-se de alguém contaminado pela patologia da fama à superfície, da conquistada na espuma dos dias, no vazio das lantejoulas, na miséria da alma, desses que são alguém por terem um foco sobre eles a incidir mas que não são absolutamente nada quando a luz se apaga. É por isso preciso que a luz esteja acesa em permanência, quando não, há que atear incêndios, provocar tempestades, imaginar guerras, diabolizar povos. Costumamos rir destes loucos (e/ou condená-los) quando eles estão em países pequenos e sem poder, mas o que fazer agora que a loucura está instalada no (talvez) país mais poderoso do mundo?

 ~CC~


segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Cinco mil e um



Este concelho tem só cinco mil habitantes, disse ele, que vive ali perto desde sempre. Estamos no Alentejo central, interior. Há vinte anos asseguro-vos, vi estas ruas cheias. Por aqui há um incêndio sem fogo há muito tempo, as altas temperaturas lambem a terra e deixam crescer pouco verde, apenas os sobreiros resistem a (quase) tudo, as pessoas foram desaparecendo pouco a pouco. Como é que tanta beleza pode ser deixada assim ao abandono? Andamos pelas ruas da vila e metade das casas estão fechadas, muitas delas à venda, outras nem isso pois são vítimas de batalhas intermináveis entre herdeiros. É como se a cada esquina estivesse uma coisa única prestes a ser abandonada: uma prática artesanal milenar, um bolo ou um salgado que só ali se fazem e há muitos séculos, uma roupa que se adaptava ao clima, um modo de falar. O teatro está em reconstrução e fixo-me nele, candidataria-me a ser a cinco mil e um, caso pudesse tomar conta dele.

~CC~

quinta-feira, 30 de novembro de 2017

No bairro



As miúdas, ainda hoje penso o que foi que me distanciou delas logo nos primeiros momentos. Acho que foi o facto de não olharem para mim nos olhos. Das malas colocadas à frente das carteiras para esconderem os telemóveis. Dos rostos tristes que a maioria tinha. Pensava amiúde que eram tão jovens e já estavam tão mortas por dentro. Não imaginam como é quando temos uma turma assim. É um desalento acordar para lhes dar aulas logo às 9 da manhã. Fiz algumas piruetas, as possíveis, para lhes despertar o interesse. Nada com muito êxito, embora de quando em quando as sentisse mais perto, um pouco mais interessadas.

Depois levei-as para um bairro histórico muito pobre aqui na cidade. Lembram-se como era o bairro alto nos anos 80? Era um lugar com gente pobre, bêbados, prostitutas, embarcados, pequenos comerciantes, donas de casa, emigrantes. Pareceram-me ainda miúdas, um nadinha assustadas, uma agarrou-me o braço e pediu para ir com elas, pois iam falar com um adulto homem e tinham medo. Disse-lhes que as pessoas não moram nos livros técnicos que falam de como elas são e que elas  ainda por cima detestavam ler, estavam ali e eram de carne e osso, tinham que aprender a ouvi-las. Escutar é uma competência profissional, uma das maiores. O choque com a realidade fez-se com amortecedor, mas aconteceu. Houve pequenas lágrimas, bocas que se abriram de espanto, confissões que vieram veladas.  Até para mim que às vezes acho que já vi tudo quanto se chama miséria. Mas não vi, nunca se vê tudo, cada história é singular, mesmo que se assemelhem no desespero que nos provocam.

As miúdas mudaram um bocadinho, já olham para mim quando falam comigo. Às vezes chegam-nos estas coisas pequenas.

~CC~






terça-feira, 28 de novembro de 2017

Andar em pézinhos de lã



Apesar de falar bastante da doença, não vivo já com ela a tempo inteiro, deixou de ser o meu centro e está na minha periferia, desloquei-a para lá. Às vezes, na semanas em que tenho consulta, como acontece nesta, até é estranho pronunciar essa palavra, parte de mim voltou a ser aquela pessoa que nunca ia ao médico. Vivo com algumas limitações é certo, algumas coisas nunca voltarão a ser o que eram, designadamente comer. Mas quantas pessoas não levam uma marmita para o trabalho e comem sozinhas, quantas por opção de vida não comem mais devagar que as outras e têm que evitar certos alimentos. Percebi que provar é infinitamente melhor que comer. E continuo a gostar imenso de cozinhar, sobretudo se for para os outros. E a última cirurgia diminuiu efectivamente o mal estar causado por um esófago demasiado curto e demasiado apertado.

Levanto-me quase sempre com energia mas ao final de um dia de trabalho sinto-me cansada e adormeço amiúde no sofá sem conseguir concluir uma série ou um filme que até estava a gostar de ver. Mas quantas não sentem o mesmo? Retomei por completo as aulas desde Setembro e não faltei ainda uma única vez, assisto a reuniões, participo em projectos e voltei a ter ideias, muitas ideias. Não vivo com pena de mim, vivo com muita vontade de viver.

Inevitavelmente a consciência da minha transitoriedade, da minha finitude, da minha fragilidade, das minhas limitações também vive comigo. Tento não correr para absolutamente nada. Tenho mais paciência com os outros e até comigo. Deixo passar coisas pelas quais antes me zangava. Concentro-me mais no essencial, no belo. Ainda não consegui coisas que queria mas hei-de lá chegar. Voltar ao yoga a sério (não ao especial para doentes oncológicos) e às caminhadas (não gostei do ginásio). Sair um fim de semana por mês para passear. Retomar a actividade associativa. Planear e executar com cuidado uma viagem que implique avião (tenho receio de sair de Portugal e tenho que o vencer). 

Isto é derrotar uma doença aos poucos, respeitando-a, não sei como dizer isto melhor. Derrotar o que respeitamos parece contraditório mas neste caso não é. Trata-se de pensar que nós, os médicos, a ciência, tudo isto age num contexto que tanto nos é conhecido como desconhecido, que tanto é feito de êxito como de fracasso, que mesmo quando bem devemos ser contidos na forma como cantamos qualquer vitória. Quando as crianças são pequenas, para não as acordarmos, não nos importamos de andar em pézinhos de lã, é assim que eu também ando.

~CC~










sábado, 25 de novembro de 2017

53



Destas coisas tristes. A de morrer aos 53, vítima de cancro.

Leio a data de nascimento de cada um deles (Pedro Rolo Duarte e João Ricardo) com um tremor que me percorre devagarinho. É também a minha data de nascimento, é também a minha idade, é também a minha doença.

Mais que isso, sei como cada um deles gostaria de ter vivido para além dos 53, seio-o quase intimamente por lhes reconhecer o labor, a luta, o olhar. Sobretudo a surpresa de poder acontecer a quem gosta tanto de viver.

Isto um ou dois dias depois de ter assistido a uma conferência com Alexandre Quintanilha em que ele nos mostrou como a Ciência anda a conquistar mais e mais vida, numa luta taco a taco, num desafio que até agora era inimaginável. Bastou-me reter a imagem que deu da mulher tetraplégica que só com um chip implantado em determinada zona do cérebro comanda um robot que lhe executa as mais diferentes tarefas, para ter outra vez esperança. Onde estava porém essa quase santa ciência quando estes dois homens morreram? Estava confrontada com as suas muitas limitações. Daqui a um ano, a dois, poderá até já ter chegado algo que lhes impedisse esta prematura morte, para eles será sempre tarde demais. 

Penso nos 54 como um horizonte, uma possibilidade saborosa, uma meta curta como passei a traçá-las.

~CC~

quinta-feira, 23 de novembro de 2017

A noite



Já vos disse que é de noite que os fantasmas acordam.

Ainda não vos tinha dito é que também de noite há certos problemas que se resolvem. A noite passada, dentro do meu sonho, eu era alguém a falar fluentemente Inglês.

~CC~

terça-feira, 21 de novembro de 2017

Devagar, devagarinho



Quanto mais o corpo se fragiliza mais cresce a sofreguidão da vida, a bebedeira de azul do céu, do cheiro do mar, dos sabores da comida, do toque da pele das pessoas amadas, das palavras dos poetas, do mundo que ainda não vi. 

Este medo constante de que me falte o tempo para o que ainda quero viver, quero fazer. E uma outra noção do que é o desperdício, esse tempo gasto com as coisas que pouco importam, nenhum crédito para os pequenos conflitos, as ninharias do dia a dia, as reuniões de trabalho sem fim marcado, as conversas que pouco contam. Não correr atrás de absolutamente nada, aliás não correr.

Outro espaço para a cigarra que há em mim mas não só, é ser também outra formiga, sair às vezes do caminho e achar que isso também é contribuir para o colectivo.

Beber devagar, comer devagar, se a vida me trouxe literalmente esta obrigação, hei-de conseguir transportar este verbo para o interior de todas as minhas células.

~CC~

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

O bloco



O bloco operatório.

A memória desse lugar. É frio, a mesa é dura, as lâmpadas intensas.

Estamos indefesos, patéticos naquelas vestes de pano azul, despidos de tudo, menos do medo. A concentração é ténue, as vozes deles imperativas, e mesmo quando riem ou dizem uma graça, é quase impossível rir com eles.

Amanhã mais uma vez.

Mas há uma coisa que eu gosto, que recordo sempre, é a alegria de acordar depois de sair de lá, a felicidade de estar viva. É ver ali ao lado os que mais amamos. É isso que quero sentir amanhã mais uma vez.

~CC~


domingo, 12 de novembro de 2017

Sul



O que é sul? O que é ser um poeta do sul?

Ecoava no ar esta pergunta quando entrei na galeria. Na mesa Nuno Judice, Gastão Cruz.

Já não sei se aquela cidade é a minha segunda ou terceira casa. Nasceu lá a minha mãe. Caminho para lá muitas e muitas vezes, é por ali que faço o meu segundo trabalho, são quase dez anos a tomar-lhe o pulso, depois de lá residir por breves meses, ainda criança.

Parece que já é o terceiro encontro internacional de poesia a sul, mas só ao terceiro dei por ele. Mais vale chegar um pouco tarde do que nunca.

A luz, a preguiça, a cal. Isso é sul, entra na poesia a sul.

Cigarras, o seu canto alucinado.

~CC~

sábado, 11 de novembro de 2017

Os lugares



 É Marc Augé que nos traz na análise da sociedade contemporânea o conceito de não lugar. São sítios despidos de história, de singularidade, habitados pela transitoriedade dos momentos que lá passamos., pelo consumo do produto. Uma loja de roupa de uma marca mundial é igual em todo o mundo, tal como uma loja de uma cadeia de supermercados ou até de livros, até o modelo de disposição dos corredores e das prateleiras é idêntico. Os não lugares estão a engolir-nos a identidade a uma velocidade assustadora, entrando e penetrando nos sítios históricos mais significativos das cidades, despindo os centros das suas lojinhas particulares, pequenos cafés, velhos alfarrabistas, floristas, sapateiros. Por vezes os não lugares mascaram-se ligeiramente para respeitar identidades que lhes seriam conflituais, é o caso de uma conhecida cadeia de hambúrguers que não vende carne de vaca na Índia. 

Se puder, se tiver ainda força hei-de habitar e defender tudo o que se lhes opõe. Por isso me deu especial prazer o concerto que fui ver a uma sociedade recreativa que tem quase dois séculos de vida. Olho para aqueles espelhos enormes, lindíssimos na parede e penso em quantas pessoas se olharam neles como eu agora me olho. As paredes contam histórias, é essa a marca dos lugares.

~CC~







domingo, 5 de novembro de 2017

Só por elas



Às vezes, a meio da noite, nos dias que passamos juntos, estamos nesse limbo entre o acordados e o adormecidos. Nisso somos muito semelhantes, raramente dormimos a noite toda, sem ou com sobressalto, acordamos muitas vezes. Ultimamente ele chega-se a mim e faz-me festas no cabelo, no rosto, no pescoço, usando muita ternura nas pontas dos dedos. É um aconchego, uma balada silenciosa para eu voltar a dormir, uma presença que se faz sentir com um toque sereno. O que nós já mudámos desde que nos conhecemos e como mudou o amor que nos temos. Ele não sabe, não ficará a saber, mas era capaz de permanecer com ele só por essas carícias com que serena a minha inquietude nocturna.

Também gosto dos pequenos trabalhos domésticos que faz, inventando o que não sabe e descobrindo o que quer saber. Com um simples elástico de cabelo arranjou a minha máquina de lavar, poupando-me um dinheirão. Uma vez que nos zangámos, a máquina avariou e paguei em arranjos para lá de 150 euros. Tenho a certeza que foi um pacto entre eles para provar a falta que ele me fazia. 

E agora inventou aquele tocar doce para eu saber que gosto dele, para me lembrar disso quando acordo a cada manhã, amordaçando qualquer protesto que se insinue em mim por ele gostar tanto de sofás.

~CC~












sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Mais uma vez



Volte, volte, volte.

Lá voltarei outro dia. Estou sempre à espera que seja o último. Talvez vá demorar para ser o último. Adiada a intervenção para daqui a quinze dias, o especialista teve que ver para crer no que se passa no meu interior.

Já nada me encanta naquele espaço tão aprazível, não me apetece o chá, o bolinho, o pão, tudo tão generosamente colocado à disposição do utente e das famílias (pelo que vejo, mais das famílias).

De vez em quando já me apetece fugir e não voltar. Como aquela doente, cuja história a minha filha me contou. Diagnosticaram-lhe um cancro e ela só voltou ao médico depois de três anos. O médico, incrédulo, perguntou-lhe as razões para tão grande demora (e loucura). E ela respondeu-lhe que tinha estado muito ocupada, tinha passeado muito com as amigas, feito viagens que há muito planeara, tinha visto nascer o neto, tinha vivido muito e bem. Como é que ele lhe poderia garantir que se tivesse feito logo a intervenção cirúrgica ela teria na mesma três anos tão bons e tão intensos?! Agora ele que fizesse o que bem entendesse, ela tinha a barriguinha cheia de coisas boas.

Mas eu não tenho tal coragem. Ou tal cobardia. 

~CC~







segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Resiliência - na própria pele



Comer uma maçã pela manhã foi a terapia certa para os primeiros enjoos da quimioterapia. Lembro-me de sair no Outono passado só para comprar as casanova, as minhas preferidas. Hoje não consegui comer uma maçã pela manhã, foi talvez a terceira tentativa para o fazer, sempre com evidente reclamação do esófago, não se desfaz ao ponto de passar por lá. É certo que na próxima sexta feira voltarei ao bloco para tentarem corrigir a situação, já que o estreitamento pós operatório não era taxativo. Prefiro, contudo, nesta como noutras coisas, imaginar que deixarei de comer maçãs cruas, tal como deixei de comer pão. A princípio a falta do pão era quase dolorosa e agora mal me lembro que existe. Consigo comê-lo transformado em migas ou torrado, nada mais. Também não posso beber café mas adoro cheirá-lo, há uma colega que passa por mim e me diz sempre para sentir o odor do café dela e é um gesto tão bonito, ela tem uns olhos verdes que sorriem quando o diz. Também beijo o meu amor depois dele beber café.

Ensinei muito o que era a resiliência aos outros, agora ensino-a a mim própria. 

~CC~

domingo, 29 de outubro de 2017

Os poetas



Ele disse muita coisa. A viagem demora 3 horas e ele tinha oitenta e um anos e meio, por isso muito para contar a uma desconhecida à qual tinha roubado o lugar à janela mas que insistiu em devolver.

De tudo o que disse registei sobretudo o momento em que relatou que há dois ou três anos ainda fazia a viagem mais vezes de carro do que de comboio. Era noite cerrada, já passava da meia noite e o carro avariou em plena auto-estrada. Ele, tal como ainda hoje, sem telemóvel (não lhe faz falta), acenava aos carros sem que nenhum parasse. Mas não teve medo, pelo contrário, era Verão, sentia a aragem da noite e ouvia os bichos pela calada da noite. Ficou ali a fruir do momento, a ver a lua, a sentir a brisa ligeira, a ouvir as cigarras e os grilos e outros animais cujo som só vinha da sua passagem pelas folhas. E depois lá parou alguém, passado algum tempo, muito tempo. 

Mas o que ele guardou não foi a mudez do seu carro vintage que ainda hoje usa para as voltinhas na cidade mas a poesia da noite de Verão. Há por aí tantos poetas escondidos no interior das pessoas.

~CC~

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Tanta solidão



A médica de família desabafou, entre a tristeza e a indignação:

- Hoje atendi uma velhota que veio cá só para me dizer que comprou um soutien novo.


Das coisas que mais me impressiona é a solidão dos mais velhos, os dias e dias que passam sem falar com ninguém, a televisão sempre ligada, a tentação de fazer a chamada para o programa de televisão onde sorteiam qualquer coisa, por vezes com a única intenção de interagir com o mundo, saber-se vivo. Soubessem, sentissem os mais novos que também chegarão lá, a esse lugar tão difícil, e correriam a ligar aos avós.

É tanta, tanta a solidão.

~CC~

domingo, 22 de outubro de 2017

Cansaço feliz



Fico espantada comigo própria e com a forma como mudei a minha exigência, quer para comigo, quer para com os outros. Dizem-nos que ter a fasquia muito alta é positivo mas a mim sempre me trouxe grande insatisfação. Foram raras as vezes que apreciei em pleno um congresso, saí contente de uma reunião, realizada de uma aula. Alguma coisa estava sempre em falta: em rigor, em qualidade, em organização, em feedback, na avaliação. Muitas vezes nos outros, mas também em mim e comigo. É verdade que durante muito tempo isso foi o motor para me procurar superar e incentivar os outros a que se superassem. Mas hoje sinto que cheguei ao fim desse caminho, que já não é assim, que agora valorizo outras coisas.

Depois destes três dias de congresso sinto-me bem, realizada e feliz. E não é que este tenha sido melhor do que os outros em termos de qualidade, possuiu exactamente os mesmos defeitos, os mesmos problemas, as insuficiências conhecidas em termos de contributos para a comunidade de saberes e para os profissionais ao qual se destinava. Poderia dizer que fazer parte da organização do princípio ao fim também muda a perspectiva das coisas, por dentro as falhas são muito mais compreensíveis. Mas não é só isso, não é bem isso. É mais o centro onde se foca a nossa atenção. E no meu caso ela está nos laços, na rede que estas coisas permitem construir. Está em cada momento informal em que rimos, dançamos e nos abraçamos, naqueles minutos em que nos esquecemos que uns éramos professores, outros alunos, uns professores doutores e outros profissionais acabadinhos de formar, na forma como despimos pergaminhos, estatutos, papéis. Nos abraços dados a quem já não via há tanto tempo. No coro de velhotes alentejanos que veio partilhar connosco o jantar antes de cantar para nós e connosco, na moça do acordeão que nos pôs a dançar, no espanto que foi ver os alunos a fazer pequenas peças de teatro, em ver que não estão lá só os mais afoitos mas também os mais reservados, os que mal acabaram de chegar. Dizem-me que me canso e canso é certo. Dizem que não devo, não posso. Mas este já não é o mesmo cansaço que era, um cansaço tantas vezes recheado de desgosto do mundo, este é agora um cansaço feliz.


~CC~






quarta-feira, 18 de outubro de 2017

E não andam a ler-me...



Os miúdos...não é que não andam a ler-me mas ouviram de alguma forma os meus lamentos, leram a minha tristeza...e viram umas notícias?

No final da aula, a pergunta...podemos colocar uma questão à turma? E queríamos que a professora ficasse também. A proposta é de angariação de fundos para as populações vítimas dos incêndios. Não sabem bem como, para onde, que coisas...não estão por um lado habituados a organizar-se, por outro é mesmo difícil pensar nas formas viáveis e justas de chegar às pessoas. Mas a vontade está lá. Não são os mesmos do outro dia, é outro curso, outra gente, outra sensibilidade. Afinal não há "os jovens", há muitos jovens, alguns mostram uma face generosa perante a brutidão do mundo. Agradeço-lhes a esperança.

~CC~

segunda-feira, 16 de outubro de 2017

De pernas para o ar



O mundo, sabemos, anda de pernas para o ar e às vezes parece-nos completamente incompreensível.

Ontem foi um desses dias, um país a arder em Outubro.

Não consegui dormir e não estava perto de nenhum incêndio. A dor dos outros mexe muito comigo, perturba-me. Quero proteger-me mas nem sempre consigo. 

Esta manhã havia uma grande discussão em pleno bar, eram alunos aos gritos, exaltados uns com os outros. Pensei que discutiam alguma coisa da actualidade, talvez mesmo o dia negro de ontem. Mas não, era apenas uns que diziam que Messi fumava charros e outros que o diziam absolutamente limpo de qualquer mácula. Atónita, não consegui compreendê-los, ouvia o que diziam, mas não percebia de todo a importância do assunto. Só pensava nos mortos de ontem, nesse modo estúpido de se perder vidas. E no alheamento deles a tudo, no modo como conseguem, como tanta gente consegue. Sei que se lhes perguntasse diriam que não podem fazer nada, não podem e como tal não é com eles. Tenho vontade de chorar, já não sei se pelas mortes de ontem, se por uma parte significativa destes jovens alheados de tudo com os quais lido.

~CC~

sábado, 14 de outubro de 2017

O lado lunar



Desde que a Susana escreveu isto sobre as lojas chinesas que ando a pensar no assunto. Mas nas últimas duas idas às ditas, a minha imagem sobre elas sofreu um forte abanão.

Tive durante muitos anos uns vizinhos chineses e havia entre nós cordialidade mas nada de confianças. Pedia-lhes para saltar da janela deles para a minha e assim entrar em casa quando me esquecia da chave, mesmo sendo um 6º andar (que loucura, penso hoje) eles acediam. As crianças e os jovens nunca vieram brincar connosco para o enorme terraço onde todos nos juntávamos, mas sorriamos e acenávamos e dizíamos sempre olá. Nunca lhes ouvi uma briga, uma discussão, um ralhete. Eram muitos mas tudo parecia funcionar na perfeição. Nesse tempo, nos anos 70 e 80 não havia ainda lojas chinesas, creio que o seu grande boom foi nos anos 90.

Rejeitei nos primeiros anos a entrada em qualquer loja do tipo, pensando que qualquer compra iria alimentar o trabalho infantil, coisa mais parva de se pensar uns anos depois, quando todos ficámos a saber que as grandes marcas (e caras) tinham as suas fábricas na china ou lá por perto. Depois de entrar foi a luta contra o cheiro a naftalina, agoniava com o cheiro e tinha de sair imediatamente. Certo é que agora cheiram muito menos. Como a Susana, tenho um companheiro que as frequenta amiúde, que gosta de se perder nas milhares de coisas que há por lá. Eu continuo a aguentar pouco tempo, mas vou sempre que é isso que se afigura o mais razoável e necessário. Sempre lhes admirei o silêncio, a cordialidade para com os clientes, o modo como toda a família se mobiliza para lá trabalhar e como as crianças são lá criadas até irem para a escola. 

Mas as duas últimas idas a estas lojas mostraram-me um outro lado ainda não visto e ou eles estão a aculturar-se ao pior do ocidente ou este lado mais escondido esteve oculto muito tempo. Numa delas ia jurar-vos que o empregado ou proprietário se estava a masturbar junto às meias e cuecas das senhoras, certo mesmo é que quando eu entrei o homem, meio estremunhado (a loja estava vazia) puxou o fecho das calças e abotoou o cinto. Parece coisa de filme, pois parece, mas acho que estava mesmo a acontecer. Fiquei à entrada a remexer numas coisas deixando-o compor-se, mas confesso que tive dificuldade em entrar e agir normalmente. Na outra, uma empregada ou proprietária estava simplesmente aos berros com um cliente, primeiro em português, depois quando ele saiu, ela continuou  em chinês com as outras colegas, tão mas tão alterada que pediu à outra para trocar de lugar com ela. Fiquei incrédula porque nunca tinha visto um homem chinês a gritar, quanto mais uma mulher. Se calhar não há povos que não sejam violentos e é verdade que há na literatura e na cinematografia chinesa alguma dessa violência. Se calhar eu era que não a conhecia, não a identificava, não a imaginava (as ideias que construímos dos outros). Ou então, como canta o Rui Veloso, temos todos um lado lunar, um vulcão adormecido, que a mim me apareceu assim de forma inesperada e mesmo inóspita no rosto de um povo.

~CC~








quarta-feira, 11 de outubro de 2017

Mudar de pele



Já andam os dias a correr à minha frente, a fugir-me. Tantas reuniões para tão pouco proveito, deixá-las correr, não me importar em demasia o que não foi, o que podia ter sido, o que não consigo. Não é fácil, hoje disse ao colega que me pediu o texto que não o tinha conseguido fazer, que o melhor era não contar com ele. Mesmo assim ele disse: tu consegues. Rapidamente as pessoas se esquecem que já não somos as mesmas.

Já andam as noites a prolongar os dias, reclamando o direito a existirem como tempo de solidão e descanso. O dique a colocar entre mim e a inquietação. 

Uma pausa, a necessidade de respirar entre duas aulas, sentar-me a meio delas, mesmo que só um bocadinho. Nesses momento a plena consciência de que sou outro eu.

É o corpo, a sua sabedoria. Eu a escutá-lo, isso aprendi. Saber adiar, saber parar, deixar escapar coisas, cancelá-las se necessário. Aprender outra vez tudo quase como se tivesse nascido outra vez. Aprender o que posso e não posso comer e, sobretudo, como devo comer. Muitas vezes tem corrido mal. A dor, as dores, às vezes incompreensíveis.

Mudo agora de roupa quando chego a casa, como tu fazes. É como se com isso me obrigasse a um outro tempo, ao corte com o trabalho, a não voltar a ser o que era. Devia ser como um bicho e ter de vez mudado de pele.

~CC~




domingo, 8 de outubro de 2017

O factor P



Há um barzinho junto à partida dos barcos, junto ao rio. Foi lá que parei depois da caminhada, após semanas sem me mexer para além das lides domésticas e das aulas. Pedi um sumo de fruta natural que veio maravilhosamente apresentado num copo alto, com uma palhinha preta comprida e um pedaço de fruta seca por cima. Paguei dois euros e cinquenta pelo sumo, cuja quantidade era tanta, que tive que beber devagar.

No dia a seguir, numa das praias populares da região, também queria um sumo natural, mas o preço de quatro euros ou quatro euros e meio demoveu-me. Pedi um sumo de garrafa. Paguei por ele dois euros e cinquenta, o mesmo que tinha pago no dia anterior, pelo belíssimo sumo natural. Olhei para a praia de sempre, linda, para a Arrábida ao fundo, para o mar tão azul, pensei que a paisagem não devia ser cobrada no sumo, é um bem colectivo.

No dia a seguir, num jardim recentemente requalificado e num café também novo, bastante bonito e agora muito bem frequentado, o mesmo sumo de garrafa custou-me um euro e cinco, exactamente o valor que pago na cantina da escola. Não incluíram o lago e os cisnes brancos no preço, nem as crianças a brincar. 

Cobrar a beleza dos lugares de tal modo a torná-la inacessível ao cidadão comum, reservando-a para os com mais posses, para os turistas, para os afortunados da vida, é uma coisa que me repugna. E por ora isso depende apenas da moral de cada um, da pessoa que mora em cada empresário. O lucro fácil está em reedição.

~CC~







quinta-feira, 5 de outubro de 2017

O dia e a noite



É de noite que os fantasmas voltam amiúde, aproveitando o meu ego desligado.

Duas noites de pesadelo. Numa, a morte a rondar, sempre a perseguir-me, a detonar em coisas tão concretas como os travões avariados, o cinto do carro cortado, o elevador sem freio. Sem nomes concretos de quem me queria tão mal, só as sombras, as suspeitas, esse irracional chamado mau olhado. Noutra, a traição sempre à espreita, um ente amado sempre rodeado de muitas amigas, a clarividência do que está à mostra mas o outro não vê ou não quer ver, essa atracção pelo abismo feminino que sempre o toca mais do que qualquer dor de outro ser mais próximo, às vezes do próprio sangue. Amizades que de dia são apenas incompreensíveis na sua estrutura relacional mas à noite se concretizam em traição efectiva. Seria demasiado simples pensar numa conversão do ciúme, é antes um mal estar pequenino que vem de muito longe e nunca morreu por completo, por mais que os dias difíceis o tenham quase apartado.

O que apagamos com tanto desvelo e cuidado à luz do dia, abafando sombras como quem tricota uma camisola, como é que a nós retorna em dor nocturna, desfazendo a malha feita.

~CC~

terça-feira, 3 de outubro de 2017

Até gostei



Ri-me do que se desarrumou.

Esta tendência para a anarquia é crescente em mim. Ou talvez a capacidade de me rir das coisas.

Que bom foi ver a desorientação, o desnorte, a perplexidade de quem julga que todos os dados estão lançados e o povo é parvinho. 

A derrota do candidato do PS em Vila do Conde, da CDU em Almada, do PSD em Lisboa e no Porto.  

As proclamadas vitórias um bocadinho patéticas: meia dúzia de miúdos a gritarem pela Cristas em Lisboa, o tom zangado, quase justiceiro de Rui Moreira no Porto (era escusado), Salvaterra de Magos como uma miragem delirante do Bloco.

E todos a zurzirem no Isaltino que parece uma imagem desfocada de si próprio, que grande confusão há quando o aparelho partidário nada ordena. Todos a acharem inexplicável a vitória de um aldrabão como se não houvesse tantos assim na história, em sua defesa ele tem que cumpriu pena, outros (ai tantos) não.

Foi ainda a vez que votei com menor convicção, logo eu que acho mesmo piada é ao poder local. Sinal de que por aqui também um susto não tarda nada e vem mesmo a calhar. E nem um sinalzinho de um movimento de cidadãos, ai fosse eu mais jovem.

~CC~






sábado, 30 de setembro de 2017

Do amarelo


Certas campanhas, embora bem intencionadas, escapam-me. O que seria feito do amarelo????

Então mas eu gosto tanto de amarelo. Não há melhor cor para tingir os campos, anunciar o verão quando é claro, definir o seu fim quando é torrado. Não há melhor cor para falar do Outono, quando mancha as folhas combinado com o castanho.

Certos tons de amarelo escuro são os meus favoritos para vestir. Namorei, o ano passado, todo o inverno, um casaco dessa cor e deixei-o escapar por pura inércia. Se o tivesse comprado e usado teria sido um Inverno mais quente. Como não gostar de uma cor que ilumina?!

~CC~

terça-feira, 26 de setembro de 2017

Nota de rodapé



Voltar a Coimbra e àquele hospital onde levava a mãe a tratamentos antes de eu própria ficar doente. É mau, pelo cansaço. É bom, pois já sou outra vez capaz de cuidar de alguém.

~CC~

domingo, 24 de setembro de 2017

Em festa



Ele fala em sorriso e em sorrisos e diz bem, estava muito feliz. Contudo, por duas vezes as lágrimas se iam soltando e sei que se o fizesse, seriam rios. Por isso contive-as, apertei os lábios, depois fui à casa de banho e passei o rosto por água. Foram, talvez, dos melhores abraços da minha vida, apertados, doces, inesquecíveis. 

~CC~

sexta-feira, 22 de setembro de 2017

Filha de deuses certamente...



Nasceu no mesmo dia que eu, não sei onde, mas imagino que não terá sido em terra de coqueiros e mangais. Tem apenas um ano mais. O coração entrega-o aos pardais que lhe pedem pão no beiral, também aos filhos, a qualquer pessoa que lhe pareça bondosa, às vezes parece que ao mundo inteiro. Abre a porta a vizinhas faladoras que andam meio perdidas na vida e conversa com as pessoas do bairro onde faz compras. Mas também é reservada, gosta do silêncio, de um copo de vinho com um bocadinho de queijo. O outono é a sua estação preferida, logo aquela que começa quando nasceu. Um dia bom começa com uma caminhada junto ao mar, com a brisa, com o olhar a apanhar o desenho das conchas. Cozinha por gosto, também por obrigação, gostava muito de provar as suas bolachinhas de manteiga, as de limão e outras mais cujo aroma chega aqui, a tantos quilómetros de distância do lugar onde ela mora. Convive com deuses e bruxas, maus olhados mas quase sempre olhados bons, o seu misticismo é o seu, é só dela. Quando eu fiquei no hospital muito para além do que estava previsto, arranjou maneira de saber de mim e só me conhecia daqui, do caldeirão virtual. Dizem que a blogosfera é isto e aquilo, eu não sei nem quero fazer teorias e pouco me interessa classificar a qualidade dos post(s) de alguém, sei apenas que enquanto pessoas como ela existirem, eu andarei por aqui, pois isso mostra-me a humanidade no seu melhor. Parabéns minha querida.

~CC~

terça-feira, 19 de setembro de 2017

Escola



Ia a menina bem segura pela mão da mãe, atravessando ruas, passeios e parques. Depois chegaria à porta da escola e teria que a largar, que a deixar sem lágrimas. Como lhe custou. Nunca fui uma menina como aquela, ia sozinha para a escola, eram tempos outros.

Vejo chegar os meus novos alunos que são já adultos, mas há neles uma estranheza, um desconforto, uma leve semelhança com a menina que vi atravessar a cidade pela mão da mãe. Não os acho felizes, desconheço os caminhos pelos quais chegaram até aqui. Felizmente os mais velhos, sobretudo os que estão de saída, mostram-me mais luz no olhar, não obstante saber como a vida lhes será agora difícil. Para me confortar, para me motivar para iniciar o ano, penso que uma pequena parte daqueles sorrisos, afinal nos pertence.

~CC~

segunda-feira, 18 de setembro de 2017

E é já noite



Vinte horas e 12 minutos e é noite. O Outono é a estação mais difícil de amar, rouba-nos, ao entrar, e dia a dia, cinco minutos de sol.

~CC~

sábado, 16 de setembro de 2017

Cidade sitiada


Uma das sobrinhas foi viver para Londres há uma semana. Como não lhe admirar a coragem por viver numa cidade sitiada. A mãe disse-lhe para não andar de metro, ao que ela respondeu que era impossível viver em Londres sem o fazer, tudo na cidade é muito longe e só o metro cruza a cidade sem tanta demora. Compreendo mas não sei se seria capaz. O meu acto heróico de luta contra o medo
foi enviar a minha candidatura Erasmus para Barcelona, mesmo assim não sabendo se chegarei a ter tal coragem. Este não é o mundo em que fui jovem, lamento tanto, mais por eles, que tinham por garantido que o mundo seria tão vasto, muito para além do horizonte que todos os dias avistam.

~CC~

quarta-feira, 13 de setembro de 2017

Um dia mais



Paul Auster diz que já viveu mais do que o seu pai, tem 66 anos. E que acorda a dizer: um dia mais, agradecendo-o. Digo o mesmo aos 52, quase 53.

~CC~

terça-feira, 12 de setembro de 2017

África



Mãe, estou desempregado...precisa uma ajuda.

Não foi por ser negro que o reconheci nesta forma de pedir mas pelo modo como me chamou mãe. É assim que as mulheres que já tiveram filhos passam a ser chamadas por todos em África, sobretudo quando dobram a casa dos quarenta. É uma forma estranha para nós mas respeitosa para eles. Não são apenas os filhos a tratá-las por mães, são todos os homens. E acordou qualquer coisa lá no fundo de mim, qualquer coisa que às vezes me parece apagada para sempre mas afinal não, ainda vive comigo.

~CC~

domingo, 10 de setembro de 2017

Noticiário



Ontem, notícias à hora do almoço, via rádio.

O furacão Irma matou seis pessoas, o terramoto no México dez, em Myanmar a violência já matou mil.

Conclusão: ainda é o homem que mata mais.

O que fazer à (des)humanidade?

~CC~

sábado, 9 de setembro de 2017

TODOS



Há anos que fazem um trabalho maravilhoso (a Madalena Vitorino já merecia o prémio Pessoa ou outra coisa qualquer dessas) que já correu vários bairros de Lisboa, faz muito mais que instalar-se, entra em comunicação profunda com os moradores, sejam eles provisórios, permanentes ou passem por lá. A maior parte das vezes procuram agregar comunidades com origem estrangeira e desta vez trabalharam com muitos refugiados. Venço o meu medo destas coisas dos grandes eventos (a minha filha para me tranquilizar diz que é um evento pequenino) e vou.

E TODOS é um nome tão forte, bate tão fundo.

É aqui:http://festivaltodos.com/intro/home

~CC~

sexta-feira, 8 de setembro de 2017

Constelações



A minha família vive espalhada em geografias multivariadas. Nas nossas conjugações infinitamente variáveis às vezes há encontros e há dois momentos privilegiados em que isso acontece: o Verão e  o Natal, bastava isso para gostar infinitamente dessas épocas. 

Chegam bebés de cujo nascimento soubemos e que agora já andam. Outros que vimos ainda bebés já falam quase como gente grande. Atrás deles chegam outros de que só sabíamos o nome porque o parentesco se faz pelo lado materno e o paterno é que é o nosso ou vice versa e depois de os vermos já lhes podemos juntar um rosto, um corpo, um modo de ser. Sabemos que o bocadinho que ali estivermos durará meses ou anos, raramente é possível saber quando nos veremos novamente. Às vezes tenho pena de não termos uma mesa grande, dessa mesa não se encher quase todos os domingos, como vejo acontecer noutras famílias. Outras, penso que nunca me habituaria a outro modo de ser família que não este. Estas configurações espalhadas pelo país, pelo mundo, que de quando em quando formam constelações felizes. 

Afinal este modo de viver juntos vivendo separados também é assim mesmo com os amores mais próximos, apenas os encontros são mais regulares. É verdade que agora, depois de um ano em que a doença trouxe todos para mais junto de mim, tenho que me habituar a que a recuperação implica também que se afastem um pouco mais e que a conquista da saúde é também a conquista da minha autonomia. Às vezes ainda custa porque não estou bem, outras porque a chegada a uma casa vazia depois de um dia intenso de trabalho é dura. Mas em geral, na maior parte das vezes, gosto da minha solidão acompanhada.

~CC~

segunda-feira, 4 de setembro de 2017

Contra Agosto



Disseste que era o último dia de férias. Estava uma noite cheia de estrelas num dos lugares mais bonitos que conheço, tínhamos acabado de jantar muito bem. Acho que nos sentíamos felizes, em paz. Eu sentia. Disseste-o, nem sequer com tristeza. Tu és assim, muito bom a aceitar a realidade como ela é. Eu também só deixei a tristeza entrar do princípio ao fim da tua frase, depois esqueci-me dela. Até hoje, até agora.

Por um lado custa, custa muito retomar o trabalho, toma-nos tanto tempo, demasiado tempo.Por outro, quem como eu, foi forçada a deixá-lo por motivo de doença, voltar é também uma vitória, é em parte uma alegria. Por outro lado, este nosso lamento pelo fim das férias, de certo modo um lamento colectivo, preocupa-me. Pelos outros e por mim. Não quero acreditar que ao longo do ano não criemos, não criarei, um tempo para me deixar maravilhar pelo conjunto de estrelas que enchem o céu nocturno. A vida não pode ser um fardo, um peso, e ter depois um mês em que nos maravilhamos. 

Hei-de fazer intervalos tão grandes que parecerão férias, serão férias. Quero ser contra Agosto, a favor de todos os meses do ano.

~CC~

quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Afinal podemos mesmo ficar mais novos



Depois de quase seis meses de fisioterapia respiratória e reforço muscular (deste último vi poucos resultados), deixei com alguma tristeza o meu fisioterapeuta, um rapazinho doce e atencioso, assim como as meninas um pouco mais velhas que faziam parte da equipa e com as quais também acabei por criar uma relação. Sem darmos conta as pessoas entram nas nossas vidas, nas nossas rotinas e depois quando saem, fica algum vazio, mesmo que não tenham sido centrais, importantes, eu costumo dizer que são as nossas pessoas periféricas ou, na linguagem das redes, os nossos laços fracos.

Passei para o ginásio da mesma instituição. E a bem do rigor, lá fui sujeita a uma avaliação. Fiquei a saber com isso que a minha idade metabólica é de 37 anos, olha que maravilha (estou quase a fazer 53)! Fiquei logo amiga do rapazinho do ginásio, pois se apesar de ter idade para ser meu filho, ele me diz que rejuvenesci assim. Mais tarde contei à minha filha que se riu e exclamou com sapiência: Oh mãe, o ideal é termos menos 5 anos de idade metabólica em relação à real, o pior é isso em ti não ser natural, mas o resultado de um processo de doença. Fiquei um bocadinho menos eufórica, mas ainda assim esperançosa de ir rejuvenescendo cada vez mais, ainda que com conta, peso e medida, não me apetece nada ter menos que 30, aliás nos 42 estava óptima em peso, altura e no resto.

O pior é mesmo a paixão que eles nutrem pela proteína, lá fiquei a lembrar-me da embalagem que tenho lá em casa e na qual não toco. Faça batidos menina (pois, se tenho 37...), diz ele, orgulhoso dos seus músculos, são fáceis de ingerir para si. Inventá-los sem leite (e não me falem em leite de soja que detesto) é que é o diabo.

~CC~




terça-feira, 29 de agosto de 2017

Um amor estúpido



O que é um amor estúpido?

Aquele que encontro quando arrumo os papéis, um caderno cheio de sms passadas para ali depois de as apagar quando já se vivia o tempo das cinzas. Mas como pude fazer uma coisa dessas? Com que alegria o atiro para o lixo, como o pude guardar para lá de dez anos. Ainda bem que vivi o suficiente para ser eu própria a deitá-lo fora, em vez da minha filha ou outro ente querido.

Recordo que houve dois tempos de paixão e dois de cinzas e está tudo ali no caderno, até com esse intervalo. Antes de eu dizer que não haveria terceira, nunca mais. Antes de eu me dignificar, fui alguém que se estupidificou num processo amoroso. Ao descalabro da paixão adolescente tudo perdoo, fazia parte, ao eu adulto nem por isso. Mas aprendi tanto com aquele erro, mas tanto. Acho que já reconheço uma conversa de bandido ao longe, a sedução embrulhada na fragilidade, num piscar de olhos malandro, nuns lábios estendidos no final da primeira saída juntos, que ainda recusei, mas não por muito tempo. Tanto namoro em muitos mails, muitos sms por dia, muitos códigos amorosos, agora olhados de longe, tremendamente ridículos. Mas não me arrependo, viver a experiência de um amor sem amor faz-nos perceber tão bem como os peixinhos se deixam enganar pelo isco dos pescadores. Um amor pode ser tão grande ou se imaginar tão grande que chega para dois ou três, o outro não nos ama mas aparece tão iluminado pelo nosso amor que achamos que sim. Fui uma presa fácil, dócil e deslumbrada e, como tal, um bocadinho estúpida. Ao ler isto, reconheci-me. Incrivelmente também coincidiu com ter encontrado o caderninho e umas coisinhas mais. Arrependimento? Já nenhum. Nem raiva, nem ódio, nem nada, às vezes até consigo ter a memória de um momento terrivelmente bom numa coisa que era tão má.

Não há amores estúpidos estão vocês a pensar. Se calhar têm razão. Mas pensem duas vezes se não nos estupidificamos às vezes por amor, perdendo o norte e com isso nos perdendo a nós também.

E o que é um amor bom? Vou pensar nisso.

~CC~








segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Barrela



Lembro-me. Queria levantar-me para arrumar uma pequena pilha de papéis e não conseguia. Queria ajudar a levantar a mesa e não conseguia. Tomava um banho e ficava cansada. Vestia-me e tinha que me sentar de seguida. Primeiro os químicos, depois as operações, descontando o tempo longo do internamento, um ano quase inteiro deitada no sofá. 

É por isso que é agora tão importante que os dois quartos sejam pintados de novo, que tudo cheire a lavado, limpo, reorganizado. Ou talvez nem seja isso, seja eu conseguir fazer o esforço de arrumar, limpar, reorganizar. Ou talvez o importante seja eu ainda conseguir traçar um objectivo e fazer um plano para chegar lá. Ou talvez seja querer, importante é o que me resta da vontade, do desejo, da força. 

Água, sabão, lixívia. Purificar.



~CC~

domingo, 27 de agosto de 2017

Acaba hoje




Último dia para passar por cá mas podem sempre marcar na agenda do próximo Verão. Há mais para além da praia e dos festivais patrocinados pelas marcas de telecomunicações, este até é organizado por um pequeno teatro amador.

~CC~



quarta-feira, 23 de agosto de 2017

Algarve



Quase tudo agora no Algarve me faz lembrar o boom turístico dos anos 80. Talvez com menos estrangeiros, menos ingleses e alemães, mais franceses e espanhóis, mais vizinhos. Espero que a bolha não rebente como aconteceu nos anos 90 e quase bateu no fundo no raiar do século XX. Aprendemos pouco com os erros, repetimos, talvez por a memória ser curta, talvez porque os que encerraram as portas do comércio não sejam os mesmos que agora os abrem.

Numa das maiores e melhores geladarias de Faro vejo o mesmo rapaz a servir gelados entre as 12h da manhã e a meia noite. Tem sido sempre ele a atender-me e já sabe que vou pedir o sabor sem açúcar, não é muito simpático nem deixa de ser, cumpre. Não posso afirmar que não faça uma pequena pausa, mas deve ser pequena mesmo. Tem um ar extenuado e não deve ter mais que 18 anos. Trabalho temporário e pedidos escritos pelos vidros das lojas é o que não falta por aqui, pagos, contudo, miseravelmente. Lamentam-se ainda assim os proprietários, mas não abrem os cordões à bolsa para pagar um pouco mais. Também eu fui como aquele rapaz nos anos 80, acabava o dia com os pés e as pernas com dores horríveis. O trabalho em bares, restaurantes e afins é do mais duro que há, raramente se cumprem as 8 horas, não há contratos e muitas vezes a folga resume-me a uma tarde ou a uma manhã.

Também é isto o Algarve em Agosto.

~CC~

segunda-feira, 21 de agosto de 2017

Alentejo



Há anos que vou lá. Muito antes de ser moda aquele canto do nosso país, aquele bocadinho que faz parte da nossa maior praia contínua, de Melides a Tróia. E trato aquela pequena vila por tu desde que fizemos lá um trabalho com os alunos e até na Igreja nos deixaram cantar. Dos maiores prazeres que tenho é sentar-me no largo pequenino, junto a três ou quatro bancas de mercado, a ler ou só a ver as pessoas a passar. Já mudou muito mas espero que algumas coisas não mudem nunca, que a pressão turística não mate o que resta de genuíno e bom.

Nós entrámos no restaurante só às 14h mas às 14h30m o rapaz atendia o telefonema e perguntava alto ao dono: estão a dizer que são sete e chegam às 15h, aceito? E o dono a dizer que não, nem pensar, a cozinha fecha às 15h. Assim mesmo, Alentejo no seu melhor, ainda há quem não se venda, quem não veja no dinheiro um altar, a cozinha tem horas e pronto e ponto final. 

Amanhã há mais, venham mais cedo.

~CC~

quarta-feira, 16 de agosto de 2017

Foi por ela....



Um pensamento insistente, persistente, contínuo, um bocadinho ingénuo, qb de inconsistente. Nada a fazer, no entanto, quando um pensamento decide ocupar-nos, percorre-nos da cabeça à pele, invade.

Vivi para fazer isto, para estar aqui neste dia, para ver ainda esta pessoa, por esta companhia, por este cheiro, por este toque meigo, para ver esta dança na praça ao ar livre, pela beleza destas falésias, por...tudo o que o verão traz de único e singular.


É um pensamento triste, é ao mesmo tempo alegre, grande parte é uma celebração, contém um bocadinho de medo (não sei se voltarei para o ano, não sei se estarei aqui). Tenho muitas vezes vontade de chorar e nunca choro. Percebo claramente que as marcas são mais profundas do que imaginava, possíveis de esconder, contudo, como as cicatrizes que trago debaixo do fato de banho de natação, o único modelo que as esconde totalmente.

A canção do Fausto podia servir.
(ainda que me digam que esta "ela" é a Europa).

~CC~

domingo, 30 de julho de 2017

Volto já



A rede que às vezes me falta tem mais a forma de colos, rostos, vozes. Tanta gente que não vejo nem toco o suficiente, isso às vezes dói.

Também aprecio esta, são contornos humanos que na maior parte dos casos não têm matéria, abraços que se desenham no ar mas sabem bem, sabem sempre bem. Não a desvalorizo, não a sobrevalorizo, procuro entendê-la em equilíbrio, integrá-la no meu equilíbrio. E só leio blogues, facebook nem vê-lo, nem nada mais. É uma escolha, fiz essa escolha. Para muitas pessoas que conheço seria um tormento partir 15 dias sem o computador e, sobretudo, sem internet. Eu sinto-o como natural e necessário. 

É uma pena ter que fazer férias em Agosto, é um país a abarrotar por todo o lado, é ainda assim bom poder fazê-lo, é a única altura do ano em que o meu corpo aceita entrar numa água que não seja tépida.

Volto já é das tabuletas deixadas na porta que mais aprecio, uma certa indefinição e a promessa, é à portuguesa. É também a que deixo aqui.

~CC~





quarta-feira, 26 de julho de 2017

Não queria



Dos quatro elementos da natureza, nunca escolhi o fogo, sempre o temi. Sou terra, terra, como tal teria que o temer.

Mas nunca o medo foi tão grande, vem com alguma revolta, nem por isso em relação às organizações que o combatem, não sei o suficiente para poder saber se fazem bem ou mal. Lágrimas de uma governante também não me fazem detestá-la ou achá-la incompetente.  A prevenção é aqui, como em quase todas as áreas, o que nos falta. A educação também, sobretudo a cívica, o amor pelo bem comum. Um amor grande e incomensurável pela natureza como parte essencial da nossa existência, isso devia aprender-se na escola, em casa, em todos os lugares.

Não queria escrever sobre isto, tinha dito isso a mim própria várias vezes, tal a saturação causada pelos meios de comunicação social, mas o fogo andou às portas da minha cidade.

O fogo vi-o da janela, junto aos bairros lá de cima, onde mora gente boa da minha cidade.

~CC~


terça-feira, 25 de julho de 2017

Um mapa sonoro



Caminhar é um ingrediente recomendado a par de uma boa dose de proteínas. Não sou uma adepta radical nem caminho desmesuradamente ou sequer em grupo. Vou quando posso, às vezes sozinha, outras com com companhia, mais vezes sozinha. Gostava mais de caminhar em trilhos pelo campo mas isso é mais raro, normalmente vou pela cidade, sempre a caminho do rio, já que a água exerce em mim um fascínio terapêutico.

Esta manhã cruzei-me com muitas pessoas que caminham sem som, ou melhor, com a sua música encaixada nos ouvidos. Uma delas até cantava o que ouvia. Olho-as com estranheza, não sei como será, mas palpita-me que não iria gostar. O que levo destas caminhadas nem é tanto o que vejo, é mais o que oiço. As vozes dos homens do mar no porto, o piar das gaivotas, o som dos aspiradores nos restaurantes, o vento nas folhas, um carro que trava mais vigorosamente, em certos lugares os risos e os gritinhos das crianças. É uma cidade inteira que tem ruído e cujo som dominante muda de lugar para lugar, é como se ao escutá-la pudesse um dia fazer dela um mapa sonoro.

~CC~

segunda-feira, 24 de julho de 2017

Sonhava que chegava o Verão, que eu chegava ao Verão



Sonhava muito com o Verão quando estava no hospital. Com todas as coisas que faria, com o sol a dourar-me a pele, com aquela luminosidade dos fins de tarde, com viagens longas aos lugares aos quais queria ir, ou tão só com vestir roupa mais leve. Esses sonhos deram-me energia, força, ânimo, creio ser essa a função dos sonhos. Sonhava que chegava o Verão, que eu chegava ao Verão.

Ontem mergulhei os pés na água fria mas transparente de Tróia. E tive tanta sorte que apareceram golfinhos perto do barco. E comi novamente um gelado da maravilhosa casa de gelados que há por lá. Essas coisas pequenas dão-me, a cada dia, força, levam as sombras. Nunca me farto do que é bom, do que é belo, nunca me ocorre dizer; já fui, já fiz, e pensar essa coisa boa como um assunto encerrado, gasto. Gosto muito de coisas novas mas também de repetir o que é bom, é como se cada uma dessas vezes permitisse guardar mais e mais na memória o cheiro, o sabor, a sensação.

Outros sonhos estão ainda distantes, tantos destinos onde queria ir, alguns que sei impossíveis, outros que ainda me parecem possíveis de lá chegar. Para o que não cumprirei falta-me o dinheiro ou a companhia ou a saúde. Tento, ao deparar-me com as barreiras, entristecer sem me deixar derrotar. Contornar as dificuldades, encontrar pequenas soluções. O por do sol em Monsaraz não será igual ao das Ilhas Gregas mas será ainda assim um alento para um coração que quer viver.

~CC~






quinta-feira, 20 de julho de 2017

Talvez o seu nome seja morte, talvez o seu nome seja monstro



Não sei se ganhei medo em estar sozinha, mas acho que não, há por vezes só alguma sensação de vazio, outras, uma ligeira ansiedade, traduzida por uma inédita alergia ao silêncio, qualquer coisa que uma televisão ou uma rádio não anulam. Trata-se de uma espécie de buraco negro no qual fico suspensa com uma tristeza sem sentido, quanto mais o buraco me absorve, mais o pânico acontece. Talvez o seu nome seja morte, talvez o seu nome seja monstro.

E o buraco negro apanha-me mais quando estou sozinha, como se estivesse ali, tal qual bicho papão à espera de me agarrar. Os outros não são sempre protectores nem o são todos, já fui apanhada mesmo na presença de outro alguém.

Mas são protectores sobretudo aqueles que têm colo para dar, que sabem que também os adultos precisam de um lugar onde esconder o rosto, de quem grite aos monstros, esvazie os buracos negros, amanse as feras, em síntese, de quem sabe o que é ser terno, dar ternura. 

~CC~

quarta-feira, 19 de julho de 2017

Combinações


Não é raro, contudo nem sempre acontece esta combinação meteorológica, o tempo exterior a combinar com o tempo interior, numa conjugação de nuvens. A culpa talvez resida nesta pequena dor que antes nada seria e agora é assustadora, ou no cansaço que se tem vindo a acumular por força da energia interior, essa sim, já não combinar com o que o corpo deixa. 

~CC~

sábado, 15 de julho de 2017

Educação emocional



A criança, cerca de cinco anos, vinha no comboio com os avós e o pai. Não foi clara para mim a situação conjugal dos pais, pareciam estar separados e a mãe já tinha outra criança, uma vez que o pai disse-lhe: pergunta à mãe pela tua irmã. Ele perguntou e a mãe respondeu, pelo que a criança informou o pai: ela esta a mamar. E o pai num tom de voz claramente educativo e assertivo disse-lhe: não é mamar que se diz, é beber o leite. E a criança: isso pai, beber o leite.

Assim se preparam as pessoas para se distanciarem do seu lado bicho, mesmo que esse seja essencial à vida humana. Pela vida fora saberão que não é bonito dizer coisas que são afinal lindas.

~CC~

quarta-feira, 12 de julho de 2017

Menos



Deixei de gostar de praia, dizia o senhor ao amigo, ambos na casa dos sessenta. São várias as pessoas que dizem coisas como esta. É um cansaço que avança pelo corpo e toma de assalto a cabeça. A praia é das primeiras coisas a cortar, o mar, como diriam os algarvios, causa muito quebranto.

Bem pelo contrário, a mãe de 88, quase 89, ligou hoje do cais de Gaia, maravilhada com a vista, uma voz tão de menina que quase lhe podia ver o brilho nos olhos. Mora no Algarve e deslocou-se de comboio com um dos seus filhos, o que mais longe mora (no Brasil).

Achei sempre que seria como ela. Agora não tenho tanta certeza. Mas estou longe da fase de riscar coisas e ainda me encontro a acumular vontades e desejos do que nunca fiz ou do que gostaria de repetir. Contudo, já me encontro na fase de dizer: disto gosto menos ou já gostei mais. De praia no Verão, por exemplo.

~CC~


segunda-feira, 10 de julho de 2017

Pompa, circunstância e muito vazio.



Até me entusiasmei ao início, há quanto tempo não sou formanda, não volto aos bancos da escola, vamos lá aprender para que não me esgote a mim própria no que já sei. Se há algo de maravilhoso é nos apaixonarmos, seja por uma cidade nova, um livro, uma teoria, uma pessoa....

Mas conclui...

O mundo está tão cheio de copy-paste. De pompa, circunstância e muito vazio. Nada é afinal inteiramente novo e isso não tem nada de mal. O mal é o convencimento de que estão a criar de novo, a ser originais, quando não fizeram mais que reler os clássicos, mastigá-los e dar-lhes outra forma. E claro, um marketing adequado aos novos tempos e um selo da união europeia. E esperteza, muita esperteza, resumida na frase: não digam que isto é um projecto, já ninguém quer ouvir falar de projectos, digam antes que é "um outro olhar". 

Um outro olhar não, um embrulho novo. Até há facetas do embrulho que podem ser engraçadas, mas não se digam mestres, façam antes vénias aos que o são verdadeiramente, digam que beberam neles até ao tutano.

E ainda falta tanto para acabar a semana. A tentar ainda assim aproveitar alguma coisa e testar a minha paciência. 

~CC~

sexta-feira, 7 de julho de 2017

Pode esperar



Fixo-me na frase que está inscrita como título no meu cinema mais querido: Paris pode esperar.

Já li sobre o filme, talvez o veja, mas isso não é o que importa. O que importa é a essência do título. Um bom programa de vida sem dúvida, não só Paris pode esperar, afinal tudo pode. Para quê andar a correr?! Se andarmos mais devagar, talvez encontremos outras coisas. E se não puderem esperar por nós, talvez não valha a pena ir. Isto não é nenhuma desculpa para aqueles que andam sempre atrasados mas antes um paradigma para aplicarmos na antecipação de qualquer correria.


~CC~

quarta-feira, 5 de julho de 2017

Esta pele que não muda



Queria mudar tanta coisa e mudei tão pouco.

Quase sem dar conta já estou praticamente submersa em trabalho, até com dificuldade em cumprir a regra de não trabalhar à noite. Dizem-me tantas vezes que estavam à minha espera para isto ou para aquilo ou que a) ou b) sem mim não funcionou que me sinto quase mal por ter estado doente, ausente. Digo-lhes sempre que pode voltar a acontecer. Curiosamente essa falta que grande parte diz sentir (outros, bem pelo contrário) não alimenta o meu ego, até acho que fiz tudo mal, centralizei provavelmente o que não devia ter centralizado, fiz demasiada gente dependente, não formei suficientemente as pessoas para me poderem substituir. Quero que agora seja diferente. 

Contudo, não é fácil. Hoje entrámos na faculdade de letras, na qual uma colega fez a sua formação há mais de trinta anos e ela exclamou: isto mudou tão pouco, quase igual. As instituições são assim, sem dúvida. Mas as pessoas também. Eu não me tinha nessa conta mas apesar de querer muito, parece que mudar uma coisa simples, me requer um esforço equivalente ao de mudar uma montanha. 

Já ando a percorrer o país de lés a lés como antes, com a consciência plena do cansaço que tal me causa, e sem conseguir deixar de o fazer. Até já pensei em fazer coisas modernaças que nos estimulam a mudança de rumo: coaching, por exemplo. Dantes na psicologia tal coisa chamava-se simplesmente aconselhamento ou com um bocadinho mais de gravidade:terapia.

Preservem-se as noites, hoje vou tentar ir ao cinema.

~CC~






sábado, 1 de julho de 2017

Vivi para a ver


Testando os limites, aceitando-os.

Demasiada gente, muito tempo em pé, vento norte, impossível marcar a presença anual no Festival MED em Loulé. Lura e Mayra teriam valido a pena, gosto do calor da música cabo verdiana. Hei-de voltar a ouvi-las, hei-de voltar ao MED.

Medindo os passos com o pedómetro, sempre aquém dos 6.000 recomendados, mas já andei lá perto na passadeira junto ao mar. O corpo vai renascendo, lembra-me uma planta da minha varanda que parece morrer todos os anos mas depois se ergue ténue quando a primavera chega.

Um almoço de sardinhas, salada montanheira e melão. Estás à minha frente e falamos, ainda gosto muito de ti. E sou capaz de comer sardinhas, ainda é possível. Tão bom

A luz do verão. Vivi para a ver.

~CC~

quarta-feira, 28 de junho de 2017

Vida dupla



Estou permanentemente a hesitar.

A proximidade da morte gerou em mim duas tendências contraditórias.

A primeira é desligar-me de tudo, resvalar para um cantinho em que ninguém me possa ferir, reduzindo cada coisa a uma insignificância, nada tem tanto valor assim que nos possa incomodar até ao nosso âmago. Suspiro para o lado, foco-me na beleza que as flores têm quando começa a primavera, na maravilha que é o primeiro banho de mar. 

A segunda é incomodar-me com tudo, vendo com clareza a paz podre em que se vive em inúmeros ângulos da vida, sobretudo o profissional. Como acontece com os mais os velhos, apetece-me perder os filtros, dizer umas verdades, partir a loiça. Mas ao contrário deles não tenho a certeza de que não me possa ferir com os cacos, acho que ao fazê-lo, sofrerei por certo.

E tenho feito um pouco das duas coisas, num movimento errático em busca de quem agora quero ser. Às vezes durmo muito mal a pensar nas verdades que tenho que dizer e a quem tenho que as dizer, como se fosse uma oportunidade única para o fazer antes que a doença possa voltar.  Algumas das injustiças e modos de agir das pessoas tocam-me directamente mas outras nem por isso, nem é por mim, é por um mundo mais digno. Outras vezes deixo-me dormir a pensar que estes pequenos monstros irão por certo sempre existir e que, por certo, enquanto pequeno Golias perderei todas as batalhas, ao contrário da história. Assim o melhor é beber o quanto posso da beleza do mundo - e bebo e adormeço e ando por aí feliz com as pequenas coisas. Por exemplo, que as cerejas existam e eu as possa comer e ficar com a boca doidamente vermelha delas.

Desde que voltei a trabalhar, a luta entre estas duas coisas é constante, um dia acordo uma e no dia seguinte acordo outra. Ao meu lado há quem diga para ser a lutadora ou para ser a desistente, justificando-o, ou quem nada diga, não sendo capaz de opinar. A maior parte das pessoas vive a vida sem pensar em que é ou quem quer ser, eu é que sempre fui insistente nas perguntas feitas a mim mesmo.

Desistência nem é bem o termo certo, é aquele deslizar para o nada que alguns chamam modo Zen. Para o fazer bem não devia sentir zanga mas eu sinto-a e afogo-a. Lutadora é mais o colocar-me na pega dos touros como se não houvesse amanhã. É um sentimento bom quando estamos lá, a adrenalina que a coragem dá, depois as consequências chegam com alguma dor.

As vidas duplas podem ser afinal só um modo interior de viver e ser. É agora assim.

~CC~






domingo, 25 de junho de 2017

A quinta vida



Vou no meu quinto (re)nascimento. Mia Couto inventaria uma palavra melhor para o regresso do abismo.

Salvei-me em criança de ser para sempre roubada à minha família, provavelmente morta, é uma história que pensamos só acontecer aos outros ou nos filmes. Só ter escapado é o aspecto mais intrigante de todos, levada e devolvida no mesmo dia. Ainda faz parte dos meus pesadelos, não conseguirei libertar-me completamente mas aos poucos fui deixando a pele. 

Tive dois acidentes graves de carro, um capotamento na autoestrada e um choque frontal com um animal de grande porte. Do primeiro a marca foi ligeira, do segundo um pouco menos, fico a suar quando vejo animais perto das estradas. Fisicamente intacta, ainda que do segundo possa decorrer a vértebra que galgou para cima de uma outra e me provoca a dor na perna direita.

Há uns anos, em missão de trabalho em Angola, salvei-me de uma salmonela feroz. Estive internada e a desintegrar-me, levei algum tempo a recuperar o equilíbrio, quase deixei de saber andar.

Mas só na quinta vida, esta que renasce depois de um tumor (ai a palavra "depois"), tenho que dizer quem sou. Toco no ombro de alguém ou digo olá sem que ele seja devolvido e é preciso dizer: sou a ~CC~, sei que estou muito diferente....abrem-se olhos e bocas de espanto, muitas vezes surge um sorriso, um pedido de desculpas, às vezes um abraço mais apertado. Sou eu, ainda sou eu.

~CC~






sexta-feira, 23 de junho de 2017

Paradoxo



Cada vez mais e mais programas de culinária de todas as formas e feitios, os livros também já enchem uma secção inteira em todas as livrarias e as estrelas michelin (ou deverei dizer eles) ascendem à categoria de estrelas mediáticas, brilhos que antes só pertenciam a actores e modelos. O blogue mais visto de todos creio ser um do mesmo teor (que antes rejeitava a publicidade mas agora se rendeu).

No entanto, nunca vi filas maiores à porta da casa de frangos e comida já pronta mais conhecida da minha cidade, uma loja modesta e pouco gourmet, antes bem tradicional, ninguém tira fotos com a embalagem na mão e coloca no facebook. 

O que fica entre o entre o que somos e o que queremos ser?

~CC~

terça-feira, 20 de junho de 2017

Convosco, nada mais



Góis, meu amor. O rio ceira, os açudes, o cerejal.

Há tantos anos, cerca de 30, sofri contigo o que agora sofres. Essa sensação absolutamente arrepiante do cerco do fogo, não há nada igual.

Antes de ti, outros pinhais, outras aldeias, animais perdidos, famílias sem norte, sem amanhã.

Resiste Góis, meu amor.

Convosco o meu coração dorido, nada mais.

~CC~

sexta-feira, 16 de junho de 2017

É fácil fazê-los felizes


Os dias de praia da infância, lembram-se?

Os meus, na infância, não foram muitos mas foram muito felizes, entre a Corimba e a Ilha do Mussulo, na cidade de Luanda que era para mim a mais bela do mundo. Dizer-vos da água límpida como um espelho, da sombra dos coqueiros, da inocência maior e mais completa.

Na adolescência, já em Portugal, torrei ao sol sem protector, hora proibida, descanso para duas horas de digestão ou o que quer que fosse. Roendo uma maçã quando calhava, uma sandes mista, água que se trazia de casa. Livre como um passarinho, mais próxima de uma miúda de rua, do que outra coisa qualquer. Quase sempre (mal ou bem) vigiada por uma irmã mais velha, tão ou mais livre que eu.

Hoje na praia uma criança dos seus cinco anos foi obrigada a tomar um banho que não queria. Primeiro a tentativa do pai que esbarrou nos berros bem altos do miúdo, depois a mãe, gloriosa, quiçá mais poderosa que o marido, levou-o até à agua enquanto ele esbracejava e chorava e mergulhou-o. Depois, ainda choroso, foi obrigado a comer uma sandes e umas batatas fritas de pacote. Uma educação esmerada, também em termos alimentares. Por todo o lado muitos e muitos brinquedos de plástico, nos quais não pegou uma única vez. Como se recordará esta criança dos seus dias de praia na infância? 

Eu também resisti a entrar na água, estava fria, fi-lo depois, só quando me apeteceu. Muitas dias não consigo entrar, ninguém me obriga, os banhos de mar devem ser qualquer coisa da vontade de cada um. Eu tenho medo das ondas, cada vez mais.

Fazer as crianças felizes parece-me tão fácil, fazê-las infelizes parece-me tão difícil, como o conseguem num dia maravilhoso de (quase) Verão.?

~CC~



segunda-feira, 12 de junho de 2017

Uma aldeia



Cada vez que estou uns dias numa aldeia, fico com a certeza que precisava de uma para morar. Precisava do silêncio e das noites cheias de estrelas, dos passeios matinais ou de fim de tarde, de me demorar a olhar as árvores, de saber de cor as rotinas dos vizinhos como eles ficariam a saber a minha. De ter a horta e as árvores de fruto, no limite um cão, depois de lhes perder o medo, mas nunca temos medo dos nossos próprios cães. Sim, uma aldeia que não fosse muito longe do mar, que não fosse muito longe de uma cidade onde pudesse ir ao café, ao cinema e a concertos, afinal são esses os fios que me ligam às cidades.

E já não é romantismo, sei também dos contra. Saberem-nos a vida de cor, separar os que são de fora dos que são de dentro e ser de dentro é ter nascido lá, ou pelos menos os pais terem nascido lá. É por vezes nos sentirmos como numa ilha, com algum sufoco. Mas respiro menos nas cidades cheias de prédios e cheiro a gasóleo, nestes muros que me parecem cada vez mais altos a tapar horizontes, na estreiteza de vistas, nos vizinhos estranhos.

Quero uma aldeia para me mudar a vida e desespero por ela não acontecer, por não a vislumbrar no meu horizonte.

~CC~

sexta-feira, 9 de junho de 2017

No reino da cidadania



Hesitei em tirar a senha prioritária e acabei por não o fazer, mesmo sabendo que iria esperar mais. E fiz bem, atendendo a que a loja do cidadão é um observatório humano, não devemos ter pressa.

Se pudesse tinha gravado em vídeo aquele casal cigano, mesmo considerando que como grávida, ela tinha tirado a senha prioritária depois de mim e sido atendida à minha frente, mea culpa. Ele deu-lhe a cadeira para ela se sentar, fez-lhe festas e abraçou-a enquanto era atendida e deixou-a falar sem interromper, só falava quando ela se virava para ele e o questionava. Demoraram muito tempo e nunca perderam a calma, a simpatia, a harmonia. Cidadãos de primeira!

Já foi mais difícil encarar a situação do homem negro que não falava português e que pura e simplesmente não percebia o que a funcionária lhe estava a explicar, ela dizia que as senhas para o pedido específico que ele tinha que fazer já tinham esgotado, que teria que voltar outro dia, ele continuava a mostrar-lhe os documentos, tentando explicar-lhe com gestos o que queria, de alguma forma com desespero, embora calmo. Demorou muito tempo esta cena confrangedora.  

Quando chegou a minha vez, a funcionária perguntou-me se já tinha preenchido o impresso, ora eu tinha estado ali uma hora mas desconhecia que era necessário ter previamente um impresso, nenhuma informação sobre isso estava disponível. Temi pelo "volte amanhã", mas ela acedeu a esperar. O que veio a seguir teve sorte pior, enganara-se na senha e tinha que voltar a tirar outra senha, tendo sido encorajado da seguinte forma " Isso é no IMT, tem que tirar outra senha, e prepare-se, são cerca de quatro horas de espera". 

Não sei bem de que cidadão são estas lojas nem porque se chamam lojas, sempre quis acreditar que eram um avanço face aos serviços tradicionais, mas hoje tenho algumas dúvidas.

~CC~