domingo, 31 de março de 2019

Pura alegria



Pode durar apenas um minuto, às vezes uma hora, outras vezes quase um dia inteiro. O que sinto é uma alegria imensa por estar viva, só isso, pura alegria. Senti-o agora mesmo, no minuto que já passou. Senti-o por me poder vestir, sair e ir a pé pela cidade.

Não sei se todos conseguem perceber isto ou apenas os que estiveram na iminência de morrer. Não por surpresa, como acontece com um desastre súbito, uma calamidade, aqueles para quem a iminência da morte é o horizonte que se lhes apresenta como provável. Todos, quase todos ou apenas estes?

~CC~

sábado, 30 de março de 2019

As coisas pequenas do amor



Vi o arco-íris num arco completo e pensei se, como eu, terias reparado nele. Se te terias deixado atravessar pelas suas cores tão perfeitas. Se o terias contemplado a sua beleza com os olhos que eu tenho. E lembrei-me dos teus olhos, raramente molhados como julguei vê-los hoje. Quando te comoves julgo amar-te mais, preciso saber-te sensível.

Os homens duros não são os meus homens, por isso preciso de saber se viste o arco-íris, ou se ele te foi indiferente. Preciso saber se a sua beleza te encantou. O amor também é feito destas coisas pequenas, ninharias.

~CC~

terça-feira, 26 de março de 2019

Num momento tudo muda.


Era domingo.

Um domingo de sol tranquilo.

E saímos pela estrada grande, devagar, na viagem tantas vezes feita pelo interior do Alentejo. Podia ver-se cada coisa muito nítida, debaixo da luz soalheira.

Sentiu-se depois o primeiro trovão a fazer tremer a terra, vieram a seguir os relâmpagos e depois a chuva forte. Olhei para os meus sapatos abertos, o vestido ligeiro, o casaquinho.

Senti o cheiro da terra molhada, intenso, forte.

A vida é isto, quando parece estar tudo arrumado, reparamos que afinal era só ilusão. Num momento tudo muda. Sei o que é esse abalo, conheço estes trovões que vêm romper-nos por dentro.


~CC~

quarta-feira, 20 de março de 2019

Um povo que chora



Nenhum povo merece.

Mas os moçambicanos são um povo de olhos doces, coração grande, sorriso largo. A sua magia está inteirinha nos livros de Mia Couto. Que tristeza chegarem à comunicação por isto e não pela sua grande nobreza.

A que conheci nos meninos que nadavam depois da escola na praia de Pemba. E nos professores que sabiam de cor o único livro que tinham para estudar a matéria das suas disciplinas. Nas mulheres que via sair de madrugada para o trabalho no campo. Nos homens que costuravam à porta das casas. Nos que apanhavam caranguejos e os colocavam nas suas enormes cestas.

Nós gostamos de viver disse a mulher na reportagem, com que dignidade o disse.

~CC~




domingo, 17 de março de 2019

Faz-me bem



Sábado à tarde fui trabalhar para lá, a grande casa do sobreiro onde, contabilizadas as horas, passo muito mais de metade da minha vida, mesmo contando as seis horas de sono. Hoje trabalharei em casa.

Todos me querem impedir de fazer isto. É verdade que às vezes estou exausta.

Mas adoro o meu trabalho, não uso a palavra amor porque amor é outra coisa. Há coisas chatas, oh se há. Mas ainda ontem saí de lá com uma sensação de satisfação. Penso em como é possível sentir isso gastando um sábado à tarde. Eram projectos que os estudantes de pós graduação estavam a fazer no terreno, todos com uma componente simultaneamente artística e educativa. Penso nisso e na forma como a satisfação advém de pensar que com eles estou a mudar alguma coisa numa realidade cinzenta. Não tenho as grandes ilusões que tinha antes sobre a mudança das coisas. Mas uma pincelada de amarelo, ali outra de azul, talvez ali um cor de laranja. Gosto cada vez menos de aulas e mais de estar com eles, de desenharmos coisas em conjunto, de falarmos lado a lado. Sonho com um ensino em que isto pudesse ser a centralidade.

Depois foi ao cinema e aí sim, senti que desperdicei tempo e era uma actividade de lazer. O filme era mediano, duas estrelinhas, esforçadamente três. Bom desempenho da actriz principal, uma portuguesa. 

Não é nas categorias tradicionais: trabalho, lazer, família...que nos devemos centrar. É no prazer que cada uma delas nos traz, no bem que cada uma nos faz, uma análise que nem sempre é fácil de fazer. 

Agora vou sentir o ar da manhã de domingo andando pela cidade. Sim, isso faz-me bem.

~CC~




sábado, 16 de março de 2019

Antes gritar



O ódio, como ele se infiltra nos adolescentes em São Paulo que massacram colegas inocentes, como ele se instala num adulto na Nova Zelândia, como ele é servido sem pudor nem análise aprofundada nas televisões e nas redes sociais. Não sei se há agora mais ódio do que havia antes mas há muito mais formas de o disseminar. E nunca os inocentes me pareceram tão inocentes e nunca fomos tão vulneráveis. E neste adoecer do mundo, os nossos quatro canais inventam os programas mais estúpidos de sempre, quando pensava que com a casa dos segredos já tínhamos chegado ao pior dos patamares. Mas não há uma forma de parar com isto? Eu também sei assobiar para o lado mas há dias em que não me apetece mesmo, antes gritar.

~CC~

terça-feira, 12 de março de 2019

Um beijo de sol



São vinte e três anos de um amor que foi mudando mas cuja intensidade permaneceu igual. Não há como ele, qualquer coisa que nasce no interior de nós, se distribui pelo nosso corpo entrando nas próprias células e nos invade, às vezes com uma calma feliz, outras com uma ansiedade gritante. Não há dúvida que primeiro é qualquer coisa animal, um desejo intenso de agarrar, cuidar e respirar. Nos primeiros anos é como se fosse ainda uma extensão da nossa pele, um ser que ainda não se separou totalmente de nós e que amamos com a ferocidade da paixão. Devagar vamos percebendo que sem autonomia não poderá crescer, ganhar as suas asas, conquistar o seu mundo. E vamos amando de outra forma, deixando respirar, dominando anseios de agarrar, encher de beijos, cuidar. Um dia descobrimos que não é apenas um ser autónomo mas que é capaz de nos contestar, de pensar de forma diferente de nós, que tem saberes próprios e a sua própria forma de ver o mundo. E se isso nos pode custar, é também o melhor de tudo. É perceber que criámos um ser com vida própria, capaz dos seus próprios voos. Esse amor por alguém adulto é já um outro amor e é ainda o mesmo amor.

Parabéns filha minha, um dia bom no país em que neva nos teus anos, envio daqui um beijo de sol.

~CC~

domingo, 10 de março de 2019

País de sonhos desfeitos...



Ali, no pulsar daquela casa dentro da pequena aldeia respirei profundamente, deixando-me invadir pelo cheiro das estevas. Lá fora, muito perto, o rio a correr. Uma ideia maravilhosa que não tinha tido êxito, o de tornar aquela aldeia um lugar de acolhimento de visitantes, abrindo as portas das casas, dos pequenos quartos, das cozinhas desarrumadas, do que resta das hortas. Os mais velhos, os guardiões da memória, poderiam enxotar a solidão praticando formas de se fazerem entender e contar coisas.

Tivesse eu mais vidas.

Uma delas poderia gastar ali, a falar com os mais velhos, dizendo-lhes que há modos de lutar contra o medo do estranho. O que é uma aldeia turística sem habitantes? Apenas um casario enfeitado por camadas de tinta.

A casa grande está ali bela mas quase vazia, ela é tudo o que os museus não podem ser, tão ou mais vazia do que quando partiu a sua última habitante. Um dia a autarquia contará os números de visitantes, fará contas ao ordenado do técnico, acrescentará a luz, a água, a manutenção...e mais uma vez algo fechará morrendo no pó dos tempos.

Este é um país de maravilhosos projectos mortos, associações decrépitas, empresas goradas, sonhos desfeitos. Cada vez que uma coisa boa fecha, sinto um aperto no coração. 


~CC~





quinta-feira, 7 de março de 2019

Luto de lutar sim



Gosto do luto de lutar e não do luto como choro da morte.

Não quero chorar as mulheres mortas, quero lutar para que fiquem vivas.

E toda a luta é grito, alegria, poesia. A mão segurando o cravo. O punho erguido num céu de chumbo. Um riso solto sem pudor. Um corpo feito de curvas dançando no baile.

Celebremos a luta das mulheres.


~CC~


sexta-feira, 1 de março de 2019

Falta



O cansaço melhorou ligeiramente desde que senti a tua pele a aproximar-se da minha.

Sei, contudo, que ainda falta respirar-te.

A ti e a ao ar do mar.

A ti e ao cheiro que as árvores deitam quando chamam a Primavera.

~CC~