segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Correr aos catorze anos



Corri apenas um bocadinho mas era como se tivesse voltado aos meus catorze anos, curiosamente a primeira vez que pisei Tróia foi num corta-mato, como estava longe a perspectiva de um dia morar aqui. A posição das mãos, das pernas, o respirar, era eu mas já não era eu, era um antes que voltava. Nesse tempo correr era moda não pelos mesmos motivos que agora, é que havia em todos nós um Carlos Lopes, uma Rosa Mota adormecida, era um país a começar a acreditar em si. Agora correm para colocar as fotos de si a correr nas redes sociais, porque correr é em si mesmo uma rede social. 

Eu corro para me lembrar que tive catorze anos e uma esperança enorme na vida, corro para recuperar a esperança. Ainda pouco, muito pouco.

~CC~

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

O bicho mau



Chegou aos 42, após dois anos de intenso cansaço sem saber o que fazer da vida, calores, sufocos. A filha nascida um ano antes com uma ligeira deficiência mental, uma loirinha linda de olhos cor de mel a que deu o nome de flor. Tinha nome de bicho ruim - linfoma. Seguiram-se dois anos de tratamentos e muita indisposição, muita tristeza, o salão de cabeleiro vendido, a vida virada do avesso, incapaz de segurar o secador de cabelo e o calor que dele emanava, sendo aí que residia o pão de cada dia. A pobreza a ameaçar como a doença. Coisas que valeram: o cabelo sempre muito rente depois de começar a crescer, os olhos pintados, manter o sorriso, a doçura. Agora outra vez o bicho ruim a querer casar-se com os cinquenta, a voltar novamente, a começar tudo outra vez. Aquele caroço no espelho, bicho mau que entra na maçã quando ela está bonita, madurinha. Estava eu com calores, estava eu faltar-me o ar, estava eu neste pré pranto que gosta de rondar-me os fins de tarde. Olhei-a, com o seu cabelo curto, quase da minha idade, o seu bicho mau muito pior que o meu, que eu saiba a minha lagartinha é qualquer coisa que eu hei-de domesticar. 

~CC~

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Este país é para velhos ricos



Estranhei que num fim de semana de Setembro a lotação estivesse esgotada em alojamento hoteleiro alentejano. Sabemos como o Alentejo é belo e eu perco-me pela sua luz, mas não faz propriamente o estilo do turismo de massas, sobretudo se não for mesmo à beira mar. Uma festa, imaginei. Casais com filhos desejosos de esquecer que começaram as aulas. Um evento por perto, por certo um congresso. Afinal pude constatar da casinha que a muito custo consegui que eram casais sexagenários ou mais ainda, a gozar o sol e chuva de um Outono tropical. Um pormenor: eram todos estrangeiros...do norte da Europa é claro. Este país é tão bom para velhotes ricos.

~CC~

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Dançar à chuva



A chuva apanhou-me na saída do dia e finalmente levou o calor que senti toda a manhã, toda a tarde. Pingos grossos, fortes. Eis o regresso à terra natal em pleno Setembro, já há quem lhe chame Setembro tropical. Mas há toda uma diferença difícil de explicar...tentando ser simples, eles parecem ter nascido felizes e nós tristes. Os velhos lá cozinham, fumam e dançam e aqui andam adormecidos a xanax, atrirados para cadeirões de centros de dia ou hipnotizados pelos programas de TV que parecem durar tempos infinitos. Nasci lá, vivo cá, já vivi aqui muito mais tempo. Mas ainda sinto, juro-vos que ainda sinto o chamamento, curiosamente não tanto para Angola mas para Moçambique, Brasil, Cabo Verde, S. Tomé. Dançar na chuva é diferente se sabemos que a seguir vem o sol, lava tudo e a seguir rimos e comemos galinha picante. Nada desta chuva que parece anunciar um longo e cinzento Inverno. 

~CC~

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Outra vez a escola



O meu regresso fez-se com dificuldade. Desligo a agulha, vou para muito longe, às vezes lugares tão felizes que não quero voltar, outras lugares menos felizes de que não sei como sair.

Regressei em dose dupla, eu à minha escola, a minha filha na universidade pela primeira vez. O meu regresso fez-se pautado por uma clara luta anti praxe, eu e alguns colegas fizemos um panfleto e um manifesto em que apontamos a degradação de entrar assim numa nova etapa da vida, incentivamos sem medo a recusa, assumimos. Muitos colegas não nos apoiaram mas não importa, quebrámos anos de marasmo, anos em que nenhum professor disse nada, acho que esses anos de conivência muda foram decisivos para a situação ter piorado cada vez mais. Os pais em casa a dizerem que a opção era deles e sem assumir uma posição, os professores mudos. Adultos demissionários geram jovens perdidos.

A minha filha está em casa sem fazer nada, em não querendo ir às praxes, não há mais nada, a escola paralisa porque os a favor da praxe estão na cerimónia  e os contra não põem lá os pés. Ficam, contudo, sem nenhuma informação, no limbo. Na Faculdade dela seria bom ter os sete resistentes que o ano passado, sendo alunos do 2º ano, foram às minhas aulas, tiveram essa coragem. Não a proibi de nada, assumi a minha posição, deixando que assumisse a dela, ia custar-me se ela fosse mas não a coagia a não ir porque estas coisas têm que se fazer em liberdade. Nada disto deve ser proibido, mas deve ser denunciado, apontado, discutido.

Por acaso acho que foi para mim um começo mais feliz, senti que tinha voz e falava.

~CC~




sábado, 13 de setembro de 2014

As noites brancas



Passei a noite com o nevoeiro, sem sono, atónita com este Setembro tão virado do avesso quanto eu. Aguento bem noites sem dormir mas aguento mal noites sem fazer dormir os outros. O meu mal é-me relativamente pacífico, aguento o sofrimento, mas muito mal o sofrimento que causo aos outros. Haverá por aí quem tenha insónias e resista a medicamentos para dormir? Agora o sol já espreita, assim a querer entrar dentro de mim, timidamente. E eu bem quero enrolar-me nele, pode vir sem o vigor do Verão, um céu mesmo pintado com algumas nuvens, mas que chegue doce para que me possa abraçar. 

~CC~

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Abertura do telejornal


Impressionante a abertura do Telejornal, centrada na demissão de Paulo Bento, num dia como hoje, 11 de Setembro, historicamente uma data a ser analisada não só pelo passado mas à luz do que se hoje se vive, Mas isso, que interesse tem?!

~CC~

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Nascer em Setembro



O homem lava as janelas com tanta força, depois senta-se a fumar um cigarro na varanda. É bom ver um homem em trabalhos domésticos de afinco e esforço, seria bom que tivesse mulher em casa e mesmo assim fosse ele fazer brilhar os vidros. Preciso de esperança na humanidade para recomeçar Setembro. E nos homens.

A mulher que leva o homem paraplégico ao café e dá-lhe a beber o café e a água com enorme carinho, nenhuma vergonha, um sorriso embevecido ao olhar para ele. Preciso de acreditar no amor para que seja um bom Setembro.

O homem que preenche os impressos para a emissão do cartão de estudante de ensino superior da minha filha relaciona Setúbal com o choco frito para nos dizer que vimos de boa terra, eu acrescento os tons poéticos, tem serra e mar e rapidamente me lembro de Oviedo para dizer: e bom peixe! Preciso de acreditar que ela e eu, estejamos onde estivermos, vamos continuar a ter este laço forte.

Os colegas riem na primeira reunião de equipa, ninguém se chateia, trazemos sol ainda na pele apesar da chuva que hoje caiu. Este foi um dos Verões mais estranhos da minha vida, um preto e branco difícil de perceber até para mim. Um colega perguntou-me: as férias são mudança, o que mudaste tu? Estranhei pergunta tão profunda em pleno bar, mas respondi: em mim mudou qualquer coisa mas ainda não sei o quê. E é verdade. Preciso de acreditar em mim como pessoa essencialmente feliz para que seja Setembro. 

~CC~

domingo, 7 de setembro de 2014

Quintalão das acácias



Certas partes das cidades estão ocultas. Certas partes da vida ocultas estão. Algumas estão escondidas porque passámos por lá mas não as vimos realmente e precisamos de passar de novo, de olhar, de nos demorar, até de chorar. Outras estão ocultas porque as esconderam de nós, segredos nas cidades, nas famílias, nas vidas. Coisas que se podem desvendar e outras que nunca o serão.

Há um quintalão das acácias em Faro cujas paredes estão pintadas com as sombras das próprias árvores e dos pássaros que por lá passam. Se os lugares guardam as pessoas, então também ficámos registados na memória do lugar, foi o melhor sítio para se estar no festival que ocupou o centro histórico da cidade. Parte do meu tempo foi ocupado a olhar as árvores, tanto tempo contido em altura e magnitude, desenho vasto de ramos e folhas, quando a luz as atravessava, ficava a olhar e a música ficava para segundo plano.

No centro do meu desnorte a tua mão, o teu abraço, os lugares no chão lado a lado, a fingir-nos os miúdos que ainda somos, rir como sabemos rir e entrar na onda, concerto mais pequeno e intimo é outro diálogo com o artista. No centro da minha luta a tua mão, um laço a puxar-me para o melhor de mim.

~CC~


quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Auto e heteroterapia



Um dentista não pode curar a sua própria dor de dentes mas compreende-a melhor que ninguém, o mesmo acontece com todos os outros médicos e terapeutas. Essa compreensão que acrescenta uma lucidez maior ao núcleo da dor pode ser ainda mais cruel. Quando a dor não é física mas psicológica e as suas causas se difundiram pelo tempo não tendo no passado mais do que um nó, o psicólogo é em causa própria alguém que sofre duplamente. Poderia entregar essa dor nas mãos de qualquer colega mas é como se soubesse antecipadamente o que o outro lhe vai dizer e por isso diz isso a si mesmo. Não escolhi clínica por não acreditar que uma dor se possa tratar nas quatro paredes de um consultório, hoje acho que tenho disso outra perspectiva, menos ecológica e menos assertiva, menos crítica do divã. 

Tudo é afinal válido na busca que uma pessoa empreende no sentido da sua própria cura, do seu estar bem. Sendo agnóstica já tive vontade de me sentar numa igreja e falar com Deus. Sendo crítica do fechamento psicanalítico já tive vontade de me sentar num divã, sendo contra ansióliticos, antidepressivos e medicamentos para dormir, já os usei em SOS, achando a meditação conversa de enganar meninos e almas fracas, já tive vontade de meditar. E ao mesmo tempo que desejava nunca deixar a felicidade que acho que é o meu desígnio natural, um gosto enorme pela vida, já a achei um fardo imenso do qual não me importava de me livrar, ou desgosto de mim própria, pena de ser quem sou. Estes momentos escuros que se atravessaram no meu caminho algumas vezes, umas com razões precisas e outras com contornos obscuros e muito centrados na infância, ensinaram-me a ser tolerante com os fracos, os deprimidos, os inconstantes, os fóbicos, os loucos. É estranho que encontremos na dor o ensinamento, a compreensão, a plasticidade, mas a empatia constrói-se melhor não só quando entendemos a dor do outro mas quanto a entendemos a partir de dor semelhante. Hoje acho-me mais capaz de abraçar a dor de qualquer outro ser humano.

~CC~







terça-feira, 2 de setembro de 2014

Rosa Albardeira


Mais imagens de uma semana especial, rara como é a rosa albardeira, a crescer em altitude, só para ver sem colher.





Um carvalho tão velho que já era velho no tempo dos mais velhos.




Inventámos paredes novas com as nossas próprias imagens.


Quem já experimentou uma roda de oleiro?



Descobrir onde se inscreve a memória.

 Teares industriais na luta contra a crise que assolou a região e fez fechar nos anos 60 grande parte das fábricas.



E ainda se tece à mão, bem mais devagar, mas com outro amor.


Grutas onde se produzem cogumelos.

Tantas coisas mais...

~CC~

Crédito da reportagem fotográfica de AF. Por necessidade de proteger a imagem das crianças, não colocamos fotos em que aparecem os seus rostos (temos essa autorização apenas para o site da associação).

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

A vida numa semana



Desapareci sim. Mas foi para dentro de mim mesma. Ou para um carvalho grande que fica numa mata especial que se inunda de água no Inverno. Ou para o meio de olhos brilhantes, dedos levantados para perguntar coisas, palavras a soltarem-se, mãos a juntarem-se no meio dos caminhos. Eram 19, entre crianças e jovens, dos 8 de um sorriso matreiro aos 14 de uma loura feiticeira. De Segunda a Domingo da última semana marcámos encontro, não um encontro qualquer, mas um a sério, de alma inteira, telemóvel desligado, longe da internet, só nós na sala da igreja desactivada, ali escondidos bem no meio da vila. 


Há cerca de três meses começamos a pensar nisto apenas como uma ideia, integrando o rumo que quisemos traçar quando fundámos a Associação Move Comunidades: valorização das comunidades locais, do que têm de bom, de belo, de único. Levar connosco crianças e jovens a redescobrir um quotidiano que lhes deve parecer descoberto, sem interesse de maior. Mas não apenas isso. O desafio de transformar a descoberta de uns e dos outros, dos lugares, dos encantos, numa coisa que se possa dizer de modo artístico. Nasceu pouco a pouco a nossa rosa albardeira - história colectiva construída a partir de coisas que sabiam e de outras que descobriam, história tornada exercício dramático.

Pergunto a mim mesma porque demorei tanto a chegar aqui se sempre soube que era isto que queria. Pergunto-me porque tenho que continuar a fazer outras coisas se é por aqui que quero ir, não só com crianças e jovens mas também com adultos e idosos. Olho para a vida académica, ainda agora fui espreitar um concurso para investigador de um grande centro de investigação e embasbaquei a olhar para os critérios, já não basta publicar, é preciso que se publique nas revistas internacionais de topo, que se seja citados em determinadas bases de dados bibliométricas, tudo é escrutinado ao pormenor, tudo absolutamente pobre, um verdadeiro capitalismo, uma bolsa em que cada professor de ensino superior pode ser equiparado a um valor em acções.

A magia desta semana volta até mim com intensidade, adormeço e acordo ainda maravilhada com o que conseguimos fazer, com a forma como trabalhámos como equipa de adultos, com a forma como discutimos intensamente tudo e discordámos tantas vezes para nos podermos acertar, criar caminho. Maravilhada como estes miúdos foram capazes de numa semana evoluir tanto, fazer tanto. 

O espanto de alguma coisa ainda me espantar tanto, trazer-me uma tão grande alegria. E esta alegria veio no momento certo, acordar-me de momentos escuros que se atravessaram no meio do Verão. Oxalá o meu coração possa guardar esta energia, fazê-la eclodir mais vezes. Só por isto já valia a pena ter criado esta associação. Mas creio que faremos ainda mais, devagarinho, à medida das nossas possibilidades.

~CC~