quinta-feira, 30 de junho de 2022

Dos velhos

 

Foram pessoas válidas, reconhecidas e estimadas. Depois envelheceram. 

Em alguns casos foram mesmo pessoas de renome, com atributos que são reconhecíveis em obra produzida. Depois envelheceram.

E passaram a ser só os velhos, os que deixaram de poder ser autónomos, de escolher a sua comida, o sítio onde querem estar, o canal de televisão que querem ver, o sítio e a hora a que querem dormir. Não mais o senhor arquitecto, a senhora advogada, o dono do restaurante, a dona cabeleireira...

E os casos que conheço de maior desprotecção são os dos velhos com famílias menos tradicionais, sem vínculo de papel passado com um conjugue, sem prolongados almoços de domingo, com filhos de vários progenitores. Eram laços que na sua liberdade pareciam fortes e se desfizeram como um sopro. Vinte anos ou mais de união de facto afinal não resistiram a suspeitas de que poderia querer isto ou aquilo, ficar com a casa, o carro, ou quem sabe o jarrão chinês... Afinal o que a sociedade diz que é igual nem sempre o é. 

Tenho pensado muito nisto. Não é obviamente a regra, nem uma fatalidade.

A minha mãe tem mais anos de mulher divorciada do que de outra coisa qualquer, é verdade que teve os quatro filhos do mesmo marido e que nunca os deixou perderem-se pelo mundo, apesar de não ter urdido nenhuma teia de muito afecto. E agora cá estamos, filhos e netos. Um traz os pensos para as escaras, outro uma comidinha boa, outro viu a melhor cadeira de rodas de todas e o outro conseguiu sentá-la no sofá. Cada vitória é uma festa. Levá-la para um lar teria sido um descanso para todos nós, às vezes estamos muito cansados, às vezes ela não nos agradece, às vezes quase desistimos.

Mas cada vez que me lembro do meu telefone mudo nos dias do hospital e como agora já me atende, é uma alegria. Consta que há lugares em que os velhos nem aos telemóveis têm acesso, tudo lhes é negado e roubado.

~CC~











segunda-feira, 27 de junho de 2022

Ir e voltar


 Deixei lá o meu coração, junto do voo das garças brancas e do debicar dos flamingos. 
Não podia.
Afinal trouxe-o.
Leve, pronto a bater asas no interior dos dias.
Hei-de conseguir.
~CC~

quinta-feira, 23 de junho de 2022

Com o mar ao fundo.


Regressar aos lugares onde se foi feliz. Nem que seja para recuperar aquelas marcas de sol que nos ficaram marcadas na pele. 

Até a praia com chuva tem o mar ao fundo. Depois é trazê-lo nos olhos e colocá-lo em paisagem visual quando precisamos.

~CC~

quarta-feira, 22 de junho de 2022

Percentagens


Disse-me ele em tom aflito: 30% de esperança. Os números e o frio que transportam.

Chorei a seco, posso dizer-vos que não há pior. Não é modo de aliviar a dor, não consigo fazê-lo. Maldito corpo este que me puxa para baixo da terra quando no mais profundo de mim eu sou tão viajante, tão do vento e das ondas do céu, tão da vida, do gosto dela.

~CC~


segunda-feira, 20 de junho de 2022

Fábrica de compatibilidades

 


- Veja esta montra, tão bonita...coloridas estas sobremesas...a senhora gosta de doces?

- Eu gosto, um docinho de vez em quando...

- E agora vai comer algum destes, qual é o seu preferido?

- Se comesse algum, seria uma fatia de pavlova...

- Ah eu também gosto muito.

- E a senhora também é dessas que sai para passear o cão?

(que salto...)

- Eu?! Não, eu não tenho bichos em casa (omiti algumas traças que me atormentam).

- Tal e qual eu!

Chega entretanto o companheiro com a imperial e interrompe-lhe a conversa, puxando-o para a mesa, com olhar reprovador, do género "deixa a senhora em paz".

Confesso que saída de uma semana particularmente difícil estava absolutamente concentrada na chegada à minha cidade e num sumo de laranja fresquinho, como tal não me lembro se o senhor era alto, baixo, gordo, magro, bonito ou feito, seguramente teria 60 ou mais. Pensando, contudo, no assunto, aquilo parecia uma espécie de Tinder ao vivo e a cores, embora não conheça a aplicação, parece que tudo se resume a meia dúzia de perguntas a partir das quais nos encontram alguém compatível. Há quem acredite que o amor é uma fábrica de compatibilidades. 

Contudo, querido senhor, acho que nunca na vida bebi uma imperial, só me faltou dizer-lhe isso. Por isso, olhe, já não somos o par perfeito, embora lhe elogie muito essa sua intenção de não sair apenas para passear o cão. 

~CC~


sábado, 18 de junho de 2022

A sustentável leveza do ser

 


Gostaria de ficar mais leve, mais próxima dos voos dos pássaros e da possibilidade das suas rotas infinitas.

~CC~

domingo, 12 de junho de 2022

Ainda me espanto

 

Disse o jovem: Tu no Secundário não sabes o que é beber, se fores para a Faculdade é que vais ver. E ainda acrescentou: é uma das razões para eu não ir, já bebo muito.

~CC~

sexta-feira, 10 de junho de 2022

Dia não

 

Não gosto desse país fechado sobre si, a cheirar a vinho e a mijo em cada canto, popularucho mas sem povo capaz de fazer fracassar um regime que já era passado antes de o ser.

Não gosto desse país coladinho à Europa, a desenhar autoestradas pensando que por aí seria o desenvolvimento, chamando novos agricultores a todos aqueles que compraram jipes para desfilar nas novas herdades do Alentejo.

Não gosto deste país que plantou alojamentos locais em qualquer canto, desalojando velhotes e pessoas que amavam os seus bairros.

E como eu amo este lugar, língua de terra voltada para o mar, cheia de cheiros a terra e a vento, tão circunspecto e tão de bailarico.

Não gosto dos dias pátrios, nem da sua pompa e circunstância. Não acho graça alguma à nossa bandeira, ao nosso hino, às coisas que se escolherem para nos simbolizar. Para mim a nossa bandeira era uma onda de mar com espuma de estevas.

~CC~



domingo, 5 de junho de 2022

Para onde caminhamos?

 

Os miúdos (9-13 anos ) passaram a noite na biblioteca, uma iniciativa que acompanhei através de um estágio. Das histórias que construíram tudo era um pouco sem nexo e continha muita violência. Questionei a responsável sobre os miúdos, o que lhe enchia as cabeças. E ela respondeu-me que no dia anterior tinha aflorado a questão das  futuras escolhas profissionais. Apenas um tinha dito que queria ser bailarino. Os outros tinham todos escolhido ser youtubers, Tik Toks (isto diz-se?) ou influencers. Significa isto que não saberão fazer nada ou quase nada, viverão num mundo virtual, agarrados a um avatar que fará uma representação qualquer de si próprios. 

Ontem uma estudante de pós graduação disse-me que um aluno seu lhe tinha dito que queria ser tudo menos aquilo que o pai era. Pensei que o pai fosse ladrão, traficante de droga, pedinte ou qualquer outra coisa inaceitável para a sociedade. Mas não, o pai era simplesmente pedreiro. Como é que esta profissão passou a ser indesejável e quase vergonhosa? 

No futuro ninguém saberá fazer nada, muito menos qualquer coisa que use as mãos. Não estou certa que isso não venha realmente a fazer falta. 

As cabeças dos miúdos estão cheias de lixo virtual e a terra cheia de lixo real. Não faz parte do meu ADN ser uma pessoa negativa, mas digo-vos que há manhãs em que já não acordo com aquele vivo e grande gosto por viver. Depois corto o meu pessimismo com a diferença que alguns jovens representam face ao estado geral, grande tarefa têm pela frente, há que dar-lhes coragem.

~CC~




quarta-feira, 1 de junho de 2022

A ínfima partícula

 

Depois de meses de dúvida, hesitação, rascunhos no papel para dizer ao mundo a missão, reunião de vozes dispostas a ir à luta, vontade de fazer a ruptura nos modos antigos e instalados de gerir as coisas, dei conscientemente um passo atrás. Durante muito tempo vi aquele lugar como um dos meus possíveis destinos para fazer acontecer, fazer acontecer melhor.

Mas hoje tive a certeza que afinal foi um passo em frente.

Pela manhã lá estava eu, chegando sempre antes de todos. É bom esse tempo de observação. E depois vi e vi e não fiquei satisfeita, tanto mais para avançar. E como sempre lá avancei, sugestões em cima da mesa. E a estudante: ai a professora, a professora...sempre a ter ideias! É mesmo a professora CC...ao mesmo tempo admiração, ao mesmo tempo relutância.

Não sabe ela que me deu o que precisava, ser só isso, a professora CC, essa que incomoda tantos, desconforta, tem sempre ideias para novas e outras coisas...e às vezes, às vezes lá fica a habitar o coração de algum deles.

Há pólen nas ínfimas partículas do universo.

~CC~