segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Paragem obrigatória (III)



Há muitos livros sobre cancro, quase nenhum despertou a minha atenção. A excepção foi o livro "Uma parte errada de mim" de Paulo M. Morais. Conta a sua história sem nos dar grandes conselhos, acho isso fundamental, os sapatos de um outro raramente nos servem, precisamos de os moldar aos nossos pés, ainda assim podemos experimentá-los e ver como é andar neles. Foi assim que li o livro dele.

Nele encontrei a expressão dos tempos do medo e também de como se perde o medo. Ele conta como nos seus primeiros tempos, após a descoberta do linfoma e das primeiras sessões de quimioterapia, tinha medo de todo o tipo de contágio, ou seja das pessoas, as principais portadoras de vírus e bactérias. Evitava transportes públicos, cinemas, teatro, qualquer auditório cheio, qualquer contacto de proximidade. Levava a máscara quando era obrigatório estar em locais mais frequentados. Eu passei pelo mesmo, por esse medo atroz quando alguém perto de mim espirrava ou tossia.

E conta como um dia, farto de ter medo, foi andar de autocarro por Lisboa, de como foi bom. Eu também não consigo viver com medo, as saudades que eu tinha de cinema era tantas que me faziam mal. Domingo fui, mas já tinha começado antes a perder o medo. Houve espirros e tosse no cinema e sim, tive um bocadinho de medo, mas o gosto por estar ali superou-o. A cura, se nos isola, também nos mata, talvez só mais lentamente.

~CC~

sábado, 28 de janeiro de 2017

Ela em casa




- Mãe, o que te faz ficar com ansiedade, stressada?
- A injustiça!
- Oh mãe, estou a falar disso que agora vais fazer, uma entrevista, uma comunicação, uma reunião...quando tinhas exames, essas coisas.
- Não, a injustiça, a que é praticada comigo e com os outros, isso tira-me do sério, revolta-me*. Talvez também o que sentia antes, estar sempre atrasada em relação a um compromisso qualquer, não ter tempo para fazer bem tudo o que queria fazer e portanto ter consciência de só o fazer mais ou menos, não corresponder ao que esperava de mim própria, e...
- Ok, ok (tem que continuar a estudar e quando ela diz ok  acabaram-se as respostas e as explicações).

~CC~

* Devo dizer mais, revolta-me até às entranhas, essa parte doente de mim, na qual reconheço sim, a ansiedade se depositou como um mal.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Ainda assim


Foi há dias, fui e voltei a Lisboa de comboio. Mais ou menos a meio do percurso elas entraram.

As quatro, tão diferentes, pelo vistos a trabalhar no mesmo sítio, colegas de trabalho no regresso de uma jornada, comboio cada vez mais vazio por já estar perto da estação terminal. Falavam alto.

A de cabelo curto, lábios vermelhos, vários piercings, desafiava a colega de ar mais pacato e fatiota mais tradicional para ir com ela. Um dia, um dia tens de vir comigo! Até eu fiquei com vontade de ir com ela, de tal modo lhe brilhavam os olhos negros e persistentes. E a outra que não, que nem pensar. Até que lhe diz: se eu pudesse sabes onde ia? Ia até à minha sala de estar,  sabes que se passa uma semana inteira e não entro lá? E às vezes nem ao fim de semana. Imaginei uma mulher com dois filhos pequenos (ela tinha falado neles) que numa semana só entra nas divisões da casa associadas ao trabalho doméstico, a cozinha, os quartos, passando ao lado da sala onde os outros, os outros ficam. E a morena, tão indignada como eu: nem te digo o que eu penso disso... E eu comigo própria: nem eu.

Fiquei a pensar no dia, no dia em que a morena conseguiria levá-la com ela à aula de Kickboxing e ela aprenderia a dar um murro na mesa da cozinha e depois disso iria sentar-se confortavelmente no sofá da sala, deixando-lhes a pilha dos pratos sujos.

Não mais que 30 anos a média de idades daquelas quatro colegas de trabalho.

~CC~

quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

Terapia da dor


A dor insinuou-se desde ontem e foi resistindo à dose recomendada de paracetamol, vai fugindo mas situa-se invariavelmente abaixo ou acima do ouvido esquerdo e às vezes lá dentro. Não sei o que significa, a que corresponde, qual é o seu sentido, é mais do que dor, é já medo que seja um sinal de outra coisa qualquer. O processo terapêutico inclui dar-lhe apenas a importância devida, não deixando que me domine e apavore. Actualizo a lista de blogues lidos, companhias quase diárias, há muito que os devia ter posto a brilhar na barra do lado, como vizinhos queridos.

~CC~

PS. Ao actualizar o blogue percebi que há muito estava a funcionar com a hora do Pacífico, se fosse o Índico, ainda poderia encontrar como justificação ter lá ficada um pedaço do meu coração, assim talvez seja um dos lugares para onde viajam os meus sonhos.

terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Eles estão em casa



Eu: o programa de hoje conta com o P.
Ela: é aquele que é parvo e é de direita!
Ele: é de direita sim, mas não é parvo...
Eu: é de direita mas gosto dele.

É isto tê-los em casa. É bom. Acrescentar que há 30 anos atrás as palavras dela seriam as minhas.

~CC~

domingo, 22 de janeiro de 2017

Paragem obrigatória (II)




Há poucas coisas para ver na televisão, às vezes algumas séries e filmes interessantes. Em geral não gosto de ver programas com gente a falar, mesmo que dita inteligente, os comentadores, sejam quais eles quais forem, enchem-me de tédio. A realidade precisa pouco de comentários, nós sabemos pensar.

Acontece agora a excepção com o "curso de cultura geral" de Anabela Mota Ribeiro que passa na RTP aos domingos à noite.

Na base uma ideia excelente. Se cada um pudesse escolher dez coisas que devem constar num curso de cultura geral, o que escolheríamos? E notem, podem não ser apenas filmes, livros, podem ser lugares, espaços, quadros...Gosto porque as listas que os convidados fazem se entrelaçam com as minhas e me levam para coisas que ainda não conheço, reforçam objectos amados e me lançam interrogações sobre outras das quais não gostei. E as listas são só o pretexto da conversa que teima em fugir como se estivessem na mesa de um café.

O nome do programa parte ele próprio de uma história deliciosa e publicada em livro por Sheilam Graham Ela, descobre, já adulta, todo um mundo desconhecido mas fascinante, no qual as pessoas falam de muitas coisas que ela não conhece (quem já não se sentiu assim? Só mesmo que nasceu no berço do cânone intelectual). Pede a F. Scott Fitzgerald’s, seu amante, que elabore para ela um curso de cultural geral, o livro é o retrato dessa relação entre os dois, pautada pela ideia de que a educação é cultura e que não há idade para o saber. Sim, eu acho que a educação pode não ser só cultura, mas também o é. Não uma cultura para se exibir, afinal igual a quem mostra um vestido, é que também há muita gente assim. Uma cultura que assenta em chaves, cada vez mais chaves para nos abrirem portas para mais e outros horizontes. Afinal a lista das dez coisas talvez não seja fixa, mas mutável.


~CC~

quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Consultório



O cirurgião explicou tudo ao pormenor, toda e qualquer infecção do antes, do durante e do pós operatório. A cada explicação eu ficava branca que nem cal, pelo que a seguir, ele dizia: mas é pouco provável. Eu lá fazia um sorrisinho. Tratava a cirurgia por "grande" e de cada vez que o dizia, eu ficava novamente branca, até que tive coragem de lhe perguntar o que era uma pequena. Fiquem a saber que é tirar a vesícula, o apêndice, as amígdalas, qualquer desses órgãos menores, coisinhas de nada que só empatam. Seguiu-se a descrição dos drenos com os quais eu ia ficar e dos dias que durariam introduzidos no meu corpo, estes também com possibilidade de infectar. Sabem de que cor é a neve? Pois... Antes que eu desmaiasse, ele disse: mas é o que acontece aos fumadores, aos alcoólicos, aos que abusam do açúcar, aos hipertensos, aos doentes do coração...enfim tudo gente que se porta muito mal. Ocorreu-me dizer-lhe: essa coisa do coração, doutor, é que me preocupa, eu não sei bem o estado do meu coração. Mas calei-me, a tentar recuperar a cor.

~CC~

terça-feira, 17 de janeiro de 2017

Estar com ela




A principio é simples, anda-se sozinho

passa-se nas ruas bem devagarinho
está-se bem no silêncio e no burburinho

...

Sérgio Godinho

Eu diria exactamente o contrário face aos processos de doença prolongada. No princípio estamos muito acompanhados, chovem as mensagens, os telefonemas, os mails, até desejamos alguma paz, que se esqueçam um bocadinho de nós, não temos mãos nem cabeça para responder a todos. A princípio também nos querem incluir, ou seja, dão-nos ainda um bocadinho do espaço profissional que era o nosso, mas com o tempo vão-se esquecendo dessa partilha de territórios, assumem o barco a todo o vapor. 

Vão rareando mais e mais os contactos, os pessoais, os profissionais, todos eles. Não o digo com mágoa, muito menos com algum tipo de repreensão. Compreendo muito bem a velocidade a que a vida corre, o modo como as pessoas se ocupam entre emprego, casa, família, com pouca ou nenhuma disponibilidade para o resto. Até se lembram de nós, mas o pensamento foge entre as últimas compras à pressa e a urgência de uma tarefa que se trouxe do emprego para casa para acabar. Eu fui assim. Eu sei como é. Por isso acho que me preparei mais ou menos bem para contar quase só comigo e com ela, a solidão. E não adianta dizerem-me que tenho este ou aquele, que o outro ou a outra vem ou que posso sempre ligar a alguém. Eu não preciso de me preparar para a companhia, para os momentos em que não estou só, para aqueles tempos mais calorosos em que os outros fazem questão de dizer que nós ainda contamos para eles. Eu preciso de me preparar para um vazio que é só meu, que eu tenho de saber preencher, se possível, até desfrutar. Ter a solidão por companhia numa vida em que ela era quase coisa rara é uma aprendizagem difícil e não vejo só por mim, mas por outras pessoas que neste momento estão tão ou mais doentes que eu. 

As pessoas que estão muito ocupadas mas não estão doentes, irão ansiar pelo tempo que temos, quase invejá-lo. Eu sei, eu já fui assim. Quando sabia que alguém estava com atestado médico, pensava nas múltiplas coisas que aquela pessoa poderia fazer com o seu tempo. Mas nada é bem como parece. Nem sempre podemos ir a correr ao teatro, ao cinema, sair, passear na praia, ler, comer, beber, desfrutar a vida. A doença é bicho que rói o corpo e às vezes também a vontade. Nos tempos mais difíceis quase que não conseguia sair de casa, nem para tomar a injecção que devia, tal era o cansaço. Por isso há que aprender a estar com ela, a solidão, ou nós connosco.

~CC~


domingo, 15 de janeiro de 2017

Paragem obrigatória (I)






"Estou aqui de passagem, é para seguir em frente, sou de ferro e ninguém me dobra. Em silêncio, sou sempre eu e o que de mim se compõe e apruma"

Isabela Figueiredo, em "A Gorda"


Um livro magnífico, ainda mais do que o primeiro. Mestria na língua cheia, viva, dura, rente à pele. Lê-se num instante de tal modo ela nos agarra à casa dela, ao corpo dela. Sem fronteiras ou de fronteiras fluídas, como anuncia na advertência inicial: "Todas as personagens, geografias e situações descritas nesta narrativa são mera ficção e pura realidade".

~CC~


quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Voltar



Tinha recomendações para andar de máscara e não dar beijos a ninguém. Tinha avisos de muita gente para não ir. Mas por um mês, mês e meio serei uma mulher sem bomba infusora, sem o sabor do químico. Por isso não resisti. O abraço das quatro jovens alunas no átrio da escola ainda me aquece por dentro. Hei-de constipar-me por certo, talvez apanhar uma gripe, mas enquanto estiver viva, não hei-de ficar sem o melhor que a vida tem para dar.

~CC~

terça-feira, 10 de janeiro de 2017

O retorno



Nasci em África, naquela África branca mais para o pobre do que para o rico, de que pouco se fala. Apenas o ordenado de um pai polícia sustentava uma família com três filhos, um pouco mais tarde, quatro. Não havia luxo algum, eu andava na escola pública angolana. É verdade que tínhamos direito a um criado de cor negra (pela própria polícia) e a uma boa casa, isso mostrava que a nossa miséria era em tudo diferente da miséria dos negros. Como tantos outros, diríamos que a vida lá era maravilhosa. Era muito fácil ser feliz numa terra quente, com uma luxuriante natureza, com tempo, com o frenesim da celebração da vida. Uma terra onde a esperança não era um sentimento que se quer para o futuro, estava incorporada na própria vida.

Era apenas uma criança de dez anos quando voltei para Portugal e me tornei numa retornada, coisa que vim a descobrir ser má, por força de termos sido todos exploradores de negros. E sim, de certa forma, não havia propriamente inocentes. Todos sabiam que aquela era uma terra ocupada, há muito que a guerrilha o fazia sentir. Também não houve culpados. Por isso nunca tive, nem alimentei ódio a ninguém, muito menos aos políticos portugueses que trataram da descolonização e que são corporizados erradamente em Mário Soares. Nenhum deles poderia pagar pelo sofrimento destas crianças, homens e mulheres forçados a deixar o lugar que amavam mas que não era realmente a sua terra, por mais que isso lhes custasse a admitir. Não nego o sofrimento, vivi-o na pele, pobre era também a família que cá nos esperava, difícil e tormentoso acolhimento. Com a agravante desta terra nos parecer fria, chuvosa e triste. Mas como não apreciar e agradecer o que nos deram, mesmo tendo sido pouco? Como não agradecer aos políticos que criaram as condições necessárias para não morrermos de fome, não ficarmos sem tecto, podermos continuar os nossos estudos? Vivi de leite e queijo vindo da Holanda que íamos buscar a igrejas e a instituições de solidariedade. Mas quantos nestes tempos de crise não viveram de igual modo?! A quem culpam?!

Todo este ódio que começou a destilar assim que Mário Soares ficou doente é uma coisa anacrónica e injusta. E abre feridas que se julgavam cicatrizadas e cuja dor não nos é já necessária. Eu, pelo contrário, não tenho ódio algum, aprecio todos os que sabem rir, amar a vida, como ele sabia.

~CC~

PS. Dulce Cardoso não escreveu apenas a vida dela quando escreveu "O retorno", escreveu também uma parte da minha vida. O livro não tem um pingo de ódio e agradeço-lhe por isso. Um dia talvez lhe diga.


segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Um terço do jogo



Como é que se designa alguém que venceu apenas ainda um terço do jogo? É um terço que marca uma parte do caminho, abrindo outra nova e diferente etapa.


~CC~

sábado, 7 de janeiro de 2017

Meus amores, meus queridos



Entre as terras das quais me sinto um bocadinho filha, piscatórias e a sul, há lugares onde se come bem e barato. Ontem e hoje, duas tascas diferentes, uma de peixe e outra de comidinha de panela. Em comum o sermos tratados por "meus amores" e "meus queridos", com um acentuar do "r" que era muito típico desta cidade, sobretudo nos bairros mais antigos. Não há nada de falso ali, fazem-nos sentir como família, como parte integrante da cozinha ou do grelhador, como alguém que voltará sempre e não está ali de passagem. Não conseguimos bem distinguir quem são os empregados ou os donos, embora haja uma mulher que num e no outro caso se destaca, é ela que nos cumprimenta quando chegamos e saímos, que recomenda a comida, que vem saber se está tudo bem, se queremos mais um bocadinho de alguma coisa. E isto de querer mais um bocadinho, sabendo que não o vamos pagar, faz toda a diferença e a sério, não uma mera cortesia. Hoje foi uma travessa de arroz de tomate que estava absolutamente delicioso.

Na tasca de ontem somos de facto clientes mais ou menos habituais mas estreámos a de hoje, ocupando uma das três mesas lá existentes. E saímos como se há muito a frequentássemos, com a certeza de que vamos voltar. Anos luz das mesas dos chefes com estrela mas tão, tão bom. E rimos tanto e com tanto gosto, uma coisa que se faz só nestes sítios em que a comida é mesmo um conforto, um laço.

E que receio tenho de que a cidade, cada vez mais referida nos roteiros turísticos, perca estes sítios. Estes lugares onde somos amores e queridos.

~CC~


PS. Hoje até me esqueci de tomar os comprimidos para o enjoo e vá lá saber-se porquê...não enjoei mesmo nada.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

Deus, deuses, deusas



Não posso deixar de dizer que sim, nestes últimos quatro meses senti algumas vezes vontade de entrar numa igreja. Mas não foi para encontrar Deus, apenas o silêncio que a civilização me roubou. Talvez alguma paz. As conversões a um culto religioso quando a morte se intromete no caminho da vida são mais que muitas. Algumas impressionaram-me por serem de ateus convictos, percursos inteiros ligados a outros horizontes, outras crenças (por exemplo, Maria Barroso, perante o acidente do filho João). 

Já eu seria incapaz de rezar por mim própria, de pedir a Deus que me salve, se existe, parece-me profundamente injusto fazer-lhe esse pedido com tanta coisa que lhe poderia pedir, quantas vidas se poderiam salvar de uma vez só se certas coisas não existissem (por exemplo, alguém a entrar a disparar numa discoteca na Turquia). Também não me posso converter pensando numa outra vida, num suposto além no qual eu ou parte de mim teriam continuidade, pois isso seria apenas um negócio, oferecer a minha fé em troca de um poiso no infinito. Também não me atraem outros percursos alternativos, integrados de uma mística susceptível de sossegar-me, pois há muito que eu acho que somos meros pontinhos no universo, só os pontinhos que nos tocaram é que sentirão a nossa falta. Sou pequena, sou finita, sou mortal. Bem sei que assim tudo é mais difícil, mais penoso, mais labiríntico. E se eu tinha razões para acreditar pelo menos nos deuses. Primeiro porque tenho o nome da deusa terra, coisa com que o meu pai me brindou para enfrentar a vida, depois por já me ter salvo da desgraça e da morte uma série de vezes. Coisas mirabolantes que não acontecem a quase ninguém ou que parecem de filme. Perante isso, isto é tão terreno, tão real, acontece a tanta gente, está a acontecer-me algo que me pode matar mas que é quase trivial. Sou uma entre milhares, mesmo com o meu nome de deusa.

~CC~






quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Magia



Ao 3º ciclo de quimioterapia, 3º dia, o corpo parece estar a ceder, o milagre de ir até ao fim do ciclo sem mal de maior parece estar a gorar-se. Na segunda feira, o vaticínio das análises já anunciava, os glóbulos brancos baixos, a anemia em crescendo. Ainda assim como não decidiram parar o tratamento, continuei a achar que a minha vitória seria certa. 

Se a alma não existe, não sei o que é isso que move sempre o meu corpo, talvez um cérebro com doses extra de vontade, como há pizzas com dose extra de queijo. Mas a poção é mágica mas não milagrosa, é isso que me diz a dor na garganta e no ouvido direito, é o lado direito sempre a ressentir-se mais, se já pensava à esquerda, agora faço quase tudo à esquerda, afinal não há nada nos hemisférios que não se possa educar. Ensaio as minhas manobras de resistência, entre as quais ler, ler muito. Quando no Natal só me deram livros e um pijama, constatei que para os outros eu estava mesmo doente, coisa que me custava muito a acreditar. Afinal tinham razão, os livros são uma excelente companhia neste percurso. Também a escrita dos outros nos blogues. E até se consegue ler com dor de garganta. Se não há milagres, suspeito que há apenas magia e que alguma está na ponta dos dedos de quem escreve, nos olhos de quem lê. 

~CC~






terça-feira, 3 de janeiro de 2017

Cerejas



Uma caixa inteira de cerejas, tão grandes, tão vermelhas. Como podia ser em Janeiro estarem ali a olhar-me como se fosse Junho. Satisfiz a minha curiosidade já que na frutaria não havia rótulos de origem. Vinham do Chile, eram cerejas do Chile. Podia comê-las a ler poemas de Pablo Neruda. Tão lindas, tão sumarentas, do outro lado do mundo.

O Chile estava na agenda de hoje, já em casa, a notícia. Valparaíso estava a arder, mais de 100 casas consumidas pelo fogo. Como pode a poesia morrer assim? Mas Valparaíso não era afinal só um lugar arrumado no canto das minhas mitologias literárias, existia e sofria. Seriam de lá as cerejas? Não havendo cerejeiras nas cidades, seriam de lá perto? Talvez não, o Chile é uma imensa cordilheira que vai do calor ao frio.

Com cerejas ou sem elas, bem gostava de ir a Valparaíso. Que se salve, a bem deles e de todos nós. As cidades poema não podem morrer.

Imagem retirada de http://www.zedge.net/wallpaper/9189540/



~CC~

segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

Quem eu sou



Consegui uma proeza única, perdi as 12 passas que devia ter comido na passagem de ano, não é uma metáfora, aconteceu literalmente. Como não estava em casa, não tinha mais. Também não tinha champanhe, por isso molhei os lábios com aguardente velha. Pensando bem, deve dar tanta sorte como beber champanhe e comer as doze passas. Afinal a sorte é mera convenção humana, como as passas e o champanhe. Não me senti muito feliz, mas também não costumo sentir-me feliz nestas ocasiões. Uma vez ou outra estive feliz numa passagem de ano, menos do que aquelas em que não estive. Entristece-me a alegria, ou a falsa alegria ou o dever de ficar alegre. Nada disto por querer ser contra a corrente, nada por contestação do que aos outros alegra, mesmo só por seu eu, quem eu sou.

~CC~