segunda-feira, 18 de novembro de 2024

Provedor-mor de defuntos e ausentes

 

Se mais poética não existisse na vida de Camões, e tanta existe, chegaria este cargo que teve em Goa: provedor-mor de defuntos e ausentes.

Tinha prometido não comprar mais livros tão cedo. Mas se há um aspecto em que estou sempre a quebrar as minhas promessas é neste, é uma compulsão irresistível, sobretudo depois da participação numa sessão com o autor/a, o modo apaixonado como falam da sua obra impele-me sem escapatória. Não é tanto o ter a assinatura do autor, aliás durante muitos anos nunca pedia, achava até ridícula a fila que se fazia. Mas desta vez valeu a pena, atentem na imagem.






~CC~

sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Pinta-me de amarelo este cinzento

 

Subsistem pequenas flores amarelas, não obstante a chuva e o vento.

Subsistem pequenas borboletas brancas, não obstante o anúncio de um rigoroso Inverno. 

A borboleta branca pousa na flor amarela em beijo alimentício prolongado.

É destes detalhes que eu alimento os dias cinzentos, tentando trazer-lhes cor. É como se pedisse às flores e às borboletas que morassem um pouco dentro de mim. 



~CC~


quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Escolho o azul

 

As conquistas das mulheres que vieram antes de mim permitiram-me a imensa felicidade de ser livre, fazer as minhas escolhas, caminhar com o rosto direito, nunca atrás de ninguém. Eu continuei a luta delas com menor afinco, menor necessidade, agradecida e confiante. 

Até gosto de rosa, mas prefiro o azul, não me impeçam de escolher a cor que mais gosto. Sei que não é por aí que se faz o essencial mas quando se perde nas pequenas coisas, abre-se facilmente o caminho para as grandes. 

~CC~

domingo, 10 de novembro de 2024

Amigos de Novembro

 

Tinha dois amigos nascidos em Novembro, 

Ambos subterrâneos, sombrios e profundos

Amigos cortantes e gelados

Amigos calorosos e meigos 

Tão inteiros e genuínos


E agora só tenho um

E por isso estou muito mais sozinha

sem uma amiga de Novembro


Choro a sua ausência com os seus brincos postos nas minhas orelhas

E a memória das nossas cabeças rapadas pela doença

Ela haveria de corrigir letra por letra este poema 

E detectaria por certo o erro

Contido no uso do verbo passado para a referir


Amigos não morrem ainda que morram.

~CC~






sábado, 9 de novembro de 2024

De um lado e do seu avesso

 

Todos os dias da última semana apanhei o autocarro com o mesmo número, saí naquela paragem e desci aquela escada. Guardo tantas e tantas imagens destes dias, desta vida outra que temporariamente vivi. Absorvi do mundo tantas viagens aos mundos dos outros, esta foi mais uma.

No fim da escada todos os dias, pelas 8h30m,  aquele jovem de pele morena, pés nus nuns chinelos pretos, cigarro com cheiro muito intenso. Nunca nos olhámos e ainda assim soube que a tristeza era a sua morada.

Pelo contrário, a miúda negra vinda dos bairros difíceis e que mais participava nas aulas, disse-me com uma convicção duas vezes do seu tamanho: eu quero continuar a estudar, vou ser advogada como estas professoras que nos dão aulas. 

Há uma linha ténue e muito difícil de explicar entre quem consegue e não consegue, hesito muito nas explicações mais fáceis, há sempre um conjunto de coisas e não um milagre, nem a obra de uma pessoa única que aparece na vida de alguém ou tão só uma escola, um/a professor/a ou um desígnio. E ainda há que desembrulhar as palavras: conseguir, superar, ter êxito. A princípio aceitamos a sua simplicidade, estes miúdos diziam-nas na sua essência básica, só mais tarde vamos vendo tudo de um lado e do seu avesso ou pelo menos é o que me acontece.

~CC~



domingo, 3 de novembro de 2024

Imagens que não mentem

 

Este é um festival que pouco tenho frequentado, não obstante ser na minha cidade. Mas desta vez fui. 

Todos os filmes tinham a marca de vistoria da censura do Estado Novo e designavam-se como do Ministério da Propaganda. Os dois últimos não era narrados, não tinham som, tinham separadores com legendas, muito à imagem do cinema mudo. O que achei fabuloso era que as palavras continham uma mensagem associada ao regime, em que se enalteciam as qualidades do povo trabalhador e feliz e as imagens mostravam gente gasta, cansada, com roupas entrapadas e esquálida. É impressionante a degradação das casas, dos monumentos, das ruas, tudo mais cru e duro no preto e branco.

O último filme termina com uma mensagem sobre o bucolismo da paisagem mas o que vemos é uma velhota a sair de um casinhoto e avançar para a câmara que a vai enquadrando, terminando num zoom sobre os seus sapatos, mas estes nem são bem sapatos, são meio chinelos, estão rotos e nem sequer são um par. Ao contrário do que se vê hoje, imagens manipuladas a torto e a direito, ali são as imagens que não mentem. As palavras, essas tudo querem encobrir sem conseguir.

A música do Pedro Caldeira Cabral ajudou a ver tudo melhor.

~CC~




quinta-feira, 31 de outubro de 2024

Estar viva

 

Uma residência temporária em Lisboa para uma missão de trabalho. Faz tempo que não sentia este pulsar da grande cidade. Notas em alternado de fascínio e desilusão. 

Chego ao cair da noite e ando pelas avenidas cheias de luz e de gente, entonteço de estímulo visual e sonoro e sinto-me sem receios, é espantoso como nas cidades mais pequenas tudo desparece ao primeiro sinal da noite e aqui há tantas pessoas na rua, é bom caminhar assim com uma aragem de Outono. De repente quase tropeço num rapaz de braços estendidos como se fosse Jesus Cristo, está assim imóvel, parado, e não pede dinheiro. Um pouco adiante um sem abrigo prepara a cama na entrada de um prédio, mal lhe vejo o rosto tantas são as barbas. Tenho que ter cuidado com as ciclovias, a velocidade a que passam as trotinetes é muita, alguns carregam as famosas mochilas verdes com comida para distribuição. Desvaneço pouco a pouco o sorriso que trazia. 

Orgulhosa do meu passe e da minha opção pelos transportes públicos para deslocação na cidade, preparo-me para os autocarros. A primeira viagem é longa mas interessante, há tanto para ver e tão diferente. Quando entro nos lugares mais periféricos, a cidade muda e há menos comércio e mais gente cansada. No regresso não há apenas gente cansada, há gente entalada e mal há espaço para respirar. Custa-me a acreditar que se aguente isto todos os dias. Nas curvas mal me aguento de pé e já não sei equilibrar-me neste ondular brusco. Depois de conseguir um lugar já junto da paragem final, não percebo como é que os bancos não têm cintos pois numa paragem repentina quase embato no banco da frente. No dia seguinte tudo se repete, agora já com menos surpresa, ciente da minha condição de habitante temporária encho-me de paciência. No trajecto de volta entra um rapaz numa cadeira de rodas eléctrica, o motorista tem de sair para colocar a rampa e o ajudar, negoceiam a saída com muita naturalidade, volta-me o sorriso e a admiração e engulo o meu incómodo rendida à coragem daquele passageiro. 

Já é noite outra vez, saí duas paragens antes achando que era mais perto e podia caminhar, começa a chover e tiro o chapéu de chuva que não consigo abrir, abandono-o no caixote de lixo mais perto e sigo viagem. Penso porque é que não fico quieta e num lugar só e recompenso-me focando-me nas coisas que já aprendi e nas que aprenderei neste trabalho. Sinto que isso é estar viva.

~CC~

segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Esses que connosco voam

 


Na amizade, a atenção que darei a cada um será sempre inferior ao que cada um merecia. Ainda assim, tenho procurado traçar um caminho de ligação, escavando entre o colete de forças do trabalho, o espaço necessário para eles ficarem, ciente de que a sua permanência será parte integrante da minha felicidade. 

Em dias azuis sinto falta do bando, esses que connosco voam.

~CC~

sexta-feira, 25 de outubro de 2024

2007/15.000

 

A caixa de correio ultrapassou as 15.000 mensagens ali depositadas e amiúde lança avisos de encerramento por falta de espaço para mais. Num esforço para as apagar carreguei no botão que me levou a 2007. Não imaginava que o endereço tinha sido criado nesse ano. 

Chegaste tu em quase todas as mensagens desse ano, não sei se eras apenas tu que me escrevias ou se foram as tuas mensagens que não apaguei. Surpreendi-me com elas como se estivesse a lê-las pela primeira vez, não me lembrava delas com aquele grau de paixão, palavras tão cheias, redondas, inteiras e mesmo belas. Não há nelas nenhuma dúvida, nenhuma sombra, nenhum acanhamento, eras tu com o que eu agora considero uma surpreendente capacidade de amar, muito mais do que aquela que eu teria na altura. É tão bonito que custa usar esse botão "delete" e muito mais o "delete forever". Então carrego no outro botão e volto a 2024 e aos sinais de armazenamento quase cheio.

~CC~

quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Há liberdade na serra

Penduraram as personagens de uma vida nas árvores e viajam entre elas contando uma história com 50 anos. Passei por algumas daquelas histórias, daquelas personagens, vivi-as em alguns momentos em que a vida deles se cruzou com a minha. Mas é encantadora a maneira como com esta peça nos fazem rir de coisas sérias e quase chorar com coisas que nada têm de sério. Está ali tudo, 50 anos deste pequeno país onde toda a esperança decidiu morar um dia e depois foi morrendo pouco a pouco, voltando por vezes dentro de coisas grandes tão pequenas. Coisas como eles, um grupo de teatro alojado na improbabilidade de existir e persistir em meia dúzia de casas velhas num vale fora dos grandes centros urbanos.


(50 anos do Teatro o Bando, grande parte deles em Vale dos Barris, Palmela),

segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Caixas e caixinhas

 

A passagem era um pouco estreita para cabermos as duas, mas com jeito cabíamos. Mas ela fez questão de dizer: desculpe, eu sou gorducha. Acho que fiz um sorriso amarelo, na verdade nem foi difícil passarmos, conseguimos fazê-lo sem nos tocarmos. 

Nunca ninguém diria: pode passar à vontade que eu sou magra...ou desculpe que eu sou muito alto.

Malditas caixas em que nos encerram e nós nos encerramos.

~CC~

quinta-feira, 17 de outubro de 2024

À bolina

 

Sonhou uma família grande e teve-a. Não são todas as pessoas que têm quatro filhos, só talvez as muito corajosas. Contudo, a harmonia que idealizou, um grande piquenique com todos a partilhar a merenda, a rir e a brincar, esse ficou fora do postal.  Tenho muito carinho pelas suas lágrimas, entendo-a. 

Mas as famílias não são coisas que possamos sonhar, são mais barcos no mar aberto e devemos aprender a navegar à bolina. 

~CC~

terça-feira, 15 de outubro de 2024

Lisboa que desaparece

 

As cidades transformam-se perdendo mais e mais identidade, num movimento que parece impossível de travar. Um lugar torna-se sucesso mesmo sendo originalmente um território de armazéns fabris meio feio, é transformado em restaurantes, lojas de design e de moda. Do que ele era não sobrou um pequeno museu, uma homenagem, uma memória, tudo se varreu. Mas logo noutro ponto da cidade acontece exactamente o mesmo, e são os mesmos armazéns, a mesma lógica, quase as mesmas ementas. São também pessoas muito semelhantes os clientes, gente jovem de classe alta ou média alta, já seguros na vida ou desde sempre seguros.

Se fechar os olhos e os abrir de repente não sei onde estou, circulam empregados de origem asiática que mal falam e percebem inglês e muito menos português, mas sorriem sempre apesar dos seus olhos permanecerem tristes. As cervejas têm que ser artesanais, tem que se comer pouco ou não mostrar grande apetite e os pratos desiguais, assim como as cadeiras ou os bancos.

Fui a convite mas não já consigo sentir-me confortável nestes lugares. A minha Lisboa desaparece aos poucos.

~CC~

Nota: paga-se à entrada e colocam-nos uma pulseira, a partir daí podemos comer o que quisermos do buffet...pensando bem, alguma analogia com os processos fabris que em muito se basearam na desumanização.

sexta-feira, 11 de outubro de 2024

A nobel da Literatura

 

Senti-me muitos frustrada com o três últimos prémios nobel, não conhecia nem tinha lido nenhum daqueles autores.

Agora finalmente sim. Li a Vegetariana e o Livro Branco. Os livros mais estranhos que alguma vez li. Ainda hoje não consigo dizer se gostei ou não de cada um deles. Com a Vegetariana senti a mesma sensação de náusea que senti com o Ensaio sobre a Cegueira de Saramago, é como se a humanidade se tivesse perdido de si mesma, há uma tristeza colada a cada palavra e é como nos encerrassem num beco sem saída. Sofrer com os livros é uma coisa que me custa, não se trata de querer livros com histórias bonitas e finais felizes, é mais não conseguirmos encontrar empatia com aquele sofrimento, é essa a dificuldade. A mulher retratada na Vegetariana é um ser humano em absoluta queda e, no entanto, é difícil compreendê-la e amá-la. Já com o Livro Branco é de poesia que se trata, ainda que escrita em prosa. Mas e também hermético, gelado, um pouco amargo, escapa-se entre os dedos como água que corre. A princípio achei que era uma diferença cultural, que ela transporta na sua voz o Oriente e que o meu coração sabe ouvir melhor as vozes do Ocidente ou de África. Mas vendo bem, não é isso, ou pelo menos não é apenas isso, é mesmo a sua singularidade. 

Talvez a sua estranheza se chame originalidade e ela mereça mesmo este prémio, considero que sim.

~CC~


quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Um ano de saudade


 Minha senhora das plantas, das catatuas e das orquídeas, minha mãe.
Um ano de saudade.


Desculpa, hoje nem consigo ir aí para a limpeza e arranjos que te são devidos, minha senhora que muito prezavas a beleza.

~CC~

terça-feira, 8 de outubro de 2024

Sinal vermelho

 O carro parado ao lado do meu no sinal vermelho. Nem reparei, até que a janela desceu e ouvi os gritos delas: Professora! Professora. E acenavam e faziam uma grande festa, como se eu fosse uma amiga que há muito não viam. A minha colega ao meu lado estava espantada: aquelas alunas gostam muito de ti! Devolvi-lhes o cumprimento, um pouco mais comedida. 

Quem diria que eram aquelas (algumas) das mesmas que no ano passado me fizeram duvidar muitas vezes das minhas capacidades, hesitar nas estratégias e, dramatizando um pouco, refletir sobre o sentido da (minha) vida profissional.

Penso se um dia aprenderei a sofrer apenas com as coisas realmente importantes, se ainda vou a tempo. Mas vejo-me amiúde como alguém que precisa de um sinal vermelho para acordar.

~CC~




 

sexta-feira, 4 de outubro de 2024

O que é a poesia?!

 

Esta semana o cabaz de frutas e legumes que me chega da quinta trazia uma flor amarela.

- Olha, mandaram uma flor! Disse eu contente.

- Pois, não percebo, não se come nem se bebe! Disse ele com algum desdém.

E abriu-se ali logo um fosso.

Senti isto tantas vezes com algumas pessoas e muito próximas. Eu fazia um percurso para ir beber um café junto ao rio, perto de um jardim ou tão só num lugar com plantas e alguém me dizia que o supermercado era mais perto e mais barato. Era tão difícil explicar que poesia não é ler poemas ou escrevê-los, é a forma como se encara a vida e se é sensível ao mundo em redor. 

Está ali a poesia pousada na flor amarela dentro do cabaz.

~CC~

quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Muito a custo e sem chegar ao fim

 

A Ruivinha tão nova e singela, de olho azul, talvez por me ver ali a almoçar confortável numa mesa de um, pediu também uma mesa. De salientar que a especialidade da casa eram os hambúrgueres mas havia algumas outras opções, outra que escolhi e estava bem deliciosa. Ela demorou e demorou na escolha, embora a lista não fosse grande e optou pelo mais simples, apenas com queijo. Reparei no seu uso da língua castelhana, em vez da inglesa, que lhe parecia assentar melhor como (sua) língua nativa. Talvez se julgasse em Espanha ou talvez por simpatia tenha querido escolher a língua mais próxima da nossa. Numa eternidade de tempo, talvez uma hora ou mais, ela apenas debicou o seu repasto, tendo deixado rigorosamente metade no prato. Vi-lhe o esforço que parecia quase causar-lhe lágrimas. O empregado esforçou-se por não a incomodar, mas depois de tanto tempo lá lhe perguntou se já tinha terminado, uma vez que ela não tinha usado os talheres e não havia nenhum sinal da sua decisão. Envergonhada, disse que levava aquela metade, que estava bom mas não tinha fome. 

Acabei o meu livro, li-o numa hora*, exactamente o tempo que ela dedicou ao seu esforço de comer uma refeição. Pensei em como eu própria, por motivos de saúde, já tinha tido igual vergonha. No caso dela, a juventude não me parecia poder coincidir com uma doença como a minha, mas de modo igual, o seu desconforto. Apontaria qualquer distúrbio alimentar pois ela sentou-se para fazer uma refeição, simplesmente não conseguiu. Do mesmo modo que outros não conseguem parar de comer ou de beber. 

Tão nova, tão bonita, tão singela. Apeteceu-me abraçá-la. Mas claro que me impedi, não fosse levar um tabefe em espanhol.

~CC~

* o livro é o último do Gabriel Garcia Márquez, bem pequenino.




sábado, 28 de setembro de 2024

Cinco conchas e um último banho de mar

 

Finalmente a praia grande, a da areia fina, bem alojada na minha memória dos dias felizes. Creio risível ter claustrofobia nas praias pequenas ladeadas por rocha que num instante se fazem a pé e em que se parece sufocar no ínfimo espaço para estender a toalha, não obstante a sua beleza. Rio-me de mim mesma mas respiro bem melhor nas praias grandes que não parecem ter princípio nem fim e onde basta caminhar para encontrar espaço. A cor deste mar é tão bonita como a cor do mar na minha terra e tem uma transparência e uma calmaria que me faz sentir tranquila e em paz. Tenho consciência que o Verão está a acabar e que o meu número de banhos de mar ficou numa média muito aquém do amor que lhe tenho. Como tal, entro na água fria para lhe sentir o sal, suspeito que pela última vez. Venho despedir-me, murmuro. Não há peixe nem gaivota que me responda. 

Encontrei um desenho de conchas na areia, eram grandes e bonitas. Quem apanhou conchas tão belas e as deixou ficar?! Trouxe cinco, deixei cinco para o próximo que as queira levar ou para o mar as engolir de novo. Não gastar tudo, não consumir tudo, não ter a avidez das coisas. Quase ninguém está nesta praia sozinha como eu, não anda pela cidade, não se senta para almoçar onde lhe apetece, às vezes sinto que me olham com pena. Mas eu sou feliz a conversar comigo, são longas conversas de mim para mim, momentos de introspecção absolutamente necessários para escavar e encontrar-me.

Cinco conchas e um último banho de mar.

~CC~



quinta-feira, 26 de setembro de 2024

O Algarve no Outono


Olhando para o lado direito a vista maravilha-se, que lindas enseadas que se recortam nas rochas, deixando aqui e ali passar o mar. Quem não viria até cá olhando para a foto, provavelmente o que as agências de viagens mostram. Não olhem, contudo, para o lado da terra, deixem apenas os vossos olhos poisados nas ondinhas de espuma e no horizonte.

Se virarmos o rosto para a terra, o monstruoso cenário aparece e retira-nos qualquer suspiro maravilhado, são dezenas de prédios de várias cores, algumas bem feias, amontoados na desordem que foi a construção entre a Praia da Rocha e o Alvor. O Outono levou os banhos de mar e no cinzento da paisagem o lixo aparece inclemente, os buracos da estrada tornam-se visíveis e o verde das falésias aparece descolorado e tristonho. Não quero pensar para onde correrão os esgotos desta enorme malha urbana, a maior parte vazia e a outra parte habitada por quem vem com as promoções de final de época.

Na verdade quase não oiço falar Português, o Inglês é a língua franca destes aposentados ingleses e americanos que salvam os cafés e restaurantes de uma falência previsível, talvez alguns sejam alemães. Os empregados de mesa também falam Inglês mas são predominantemente asiáticos. Alguns deles insistem na praia e há alguns na água, afinal foi para isso que vieram, não importa o chuvisco. 

O Inglês proprietário do restaurante onde almocei e onde só havia falantes de Inglês fez questão de usar o seu parco português para falar comigo, talvez afinal ele tenha chamado Jacarandá ao lugar na expectativa de se cruzar com povos latinos e aspirar outros perfumes. Já eu devia ficar mais tempo para praticar o meu Inglês sem ir a Inglaterra. 

~CC~



quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Não podemos ignorar!

 

O homem cresce* e da sua boca saem palavras fortes, decisivas, assustadoras. Cada uma delas é um lamento por mais uma bomba, mais uma criança morta ou que ficou sem pais ou sem casa. Cada palavra dele é um alerta para o ambiente, os países desfeitos, as fronteiras dos tratados ultrapassadas, a vida humana sem qualquer valor. Mas ontem ele disse o que não queríamos ouvir: a ONU já não tem poder para quase nada e precisa de ser refundada. Maldito poder de veto, na sua origem o mundo já deturpado.

Quando nos desiludimos, tendemos a querer partir, não deixar cá crianças ou nos alhearmos de tudo. Mas não é a solução, temos que educar as nossas crianças para erguerem a sua voz nos locais em que o podem fazer, nós próprios o temos que fazer. Eu também fecho os olhos, eu também mudo de canal muitas vezes, eu também me sinto impotente, eu também não sei bem o que fazer, só sei que não podemos ignorar.

~CC~


* António Guterres

domingo, 22 de setembro de 2024

Anos 60

 

   

Inacreditáveis aqueles gritinhos  de fundo. Garanto que não era eu pois tinha acabado de nascer. 

~CC~

sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Não vem no manual

 

Acontecimentos esperados e inesperados em sucessões tristes, pequenos lampejos felizes, tudo na vertigem de uma semana intensa, veloz.

Perco pessoas queridas, vejo pessoas queridas perderem pessoas queridas. Creio que afinal é esta a maior dificuldade da idade, muito mais dolorosa do que eu já não conseguir caminhar para além dos 7 Km, ter medo e vertigens nos pontos altos, desistir antecipadamente dos trilhos que os mais novos querem fazer e fraquejar antes das viagens de avião. O que são as rugas no espelho quando comparadas com a ausência dos seres amados, com esses lugares vazios que eles deixam, como se fossem buracos escavados em nós que nenhuma terra consegue tapar?! E como consolar quem passa pelo mesmo que nós e nos é tão próximo? Que palavras escolher, que perfume colocar no abraço, que podemos oferecer que seja esperança e apoio para o passo seguinte?

Não vem nos manuais de envelhecimento, muito menos dessa coisa chamada envelhecimento activo, mais uma tontice da modernidade.

~CC~



domingo, 15 de setembro de 2024

É assim que eu rezo

 

Poderia passar todos os crepúsculos a ver o modo como as plantas e as flores ondulam ao vento e as cores se combinam em diferentes tonalidades de céu. Poderia dizer-lhes sempre o que lhes disse: sem vós a terra seria um deserto, eu seria um deserto. 

E não obstante me apetecer colher aquela rosa, deixei-a ficar, assim mais pessoas poderão desfrutar do seu vivo vermelho carmim.

~CC~

quinta-feira, 12 de setembro de 2024

Ouvido ali (I)

 

Esta vila dista apenas uns 12km da minha cidade e ainda assim o ambiente de café é completamente diferente, todos se voltam para mim quando entro e não tenho dúvidas de que todos se conhecem. 

- Então a senhora já foi dar sangue?

- Eu não... que me faz falta.

- Mas também faz falta a outros.

- E acha que eles aceitam sangue ruim? É que o meu é mesmo desses!


Nota: apeteceu-me perguntar-lhe qual a percentagem de ruindade...se ela referisse uns 30% diria que é sangue comum, podia ir. 


terça-feira, 10 de setembro de 2024

Agora preciso de ensaiar pequenos passos de dança

 

A minha vida desenhou-se num percurso irregular mas com uma missão bem clara, nem lhe chamo profissional pois também muito tinha de pessoal. Nas fases boas e menos boas, com tropeços e quedas, nunca me perdi. E aqui e ali recebi o feedback desejado, aquele afago que chega do outro lado e nos agradece pelo papel que desempenhamos. Houve mesmo quem tivesse dito que estava à vista que eu amava o que fazia. Fui-me reforçando a cada conquista, a cada êxito. Não obstante, percebi também que se até os génios chegam a um ponto em que o caminho não é mais ascendente e se esquecem deles e do seu papel, também tudo o que disse, fiz ou escrevi, seria na minha área cada vez menos relevante. Aparecem outros a dizer o que dissemos há 20 anos mas é como se fosse a primeira vez que alguém o diz. A princípio não é fácil aceitá-lo mas depois sim e por isso deixou de doer.

Mas ainda Agosto estava a terminar e chegou um vazio grande, imaginem um poeta perdido das palavras, um actor que já não consegue representar, uma mãe que já não consegue cuidar, um piloto com medo de voar. Foi assim que senti o novo ano lectivo, um deserto a desenhar-se na minha alma, como se a água tivesse acabado. 

Ora o que nos distingue é o cérebro e o coração que colocamos nos trilhos em que nos movemos, toda a gente faz coisas, mas o modo como as fazemos faz a diferença junto do outro. Um empregado de café no modo como fala connosco, um médico que nos atende, um funcionário no balcão das finanças, o desempenho de cada função pode ser baço ou brilhante.

Durante dois ou três dias senti-me muito triste, perdida e com um inequívoco desejo de parar. E foi só quando compreendi o meu cansaço e me perdoei por ele que fui capaz de retomar lentamente o curso da vida. Estes acontecimentos têm sempre o condão de me fazer entender os fracos, os vencidos, os tristes. Foi um treino de humildade e empatia. Mas agora preciso de ensaiar pequenos passos de dança.

~CC~


sexta-feira, 6 de setembro de 2024

Sobre compras...mas não sobre ananases

 

Ela torceu o nariz num esgar, fechou por um bocadinho os olhos e por fim pegou no saco com as pontinhas dos dedos, quero dizer as unhas enormes e pintadas de vermelho. Por fim, enojada, tirou um fraco de álcool gel debaixo da caixa registadora e esfregou com alívio as mãos. 

Contudo, o saco tinha apenas duas douradas frescas. 

Vinha para casa a pensar no seu repúdio e lembrei-me que há muito tempo que de facto não vejo jovens na peixaria do supermercado. 

~CC~

terça-feira, 3 de setembro de 2024

Esse desejo de escape e felicidade


Arrastava um fardo de feno às costas e um cajado na outra, subindo lentamente a rua inclinada, a bem dizer a única que subindo e descendo passa lugares justapostos, só diferenciáveis pela placa toponímica.  Não irá por certo à Casa das Artes na sede do concelho que exibe uma exposição fotográfica sobre uma ilha de Cabo Verde nem ver a exposição sobre o humor na casa brasonada. Provavelmente, de quando em quando irá ao mercado lá abaixo ou a uma consulta no centro de saúde e pouco mais. Agradeço-lhe em silêncio não ter partido, quando aqui estamos percebemos muito melhor o que é um país que se aglomerou junto ao mar. Quase não vemos ninguém, parece haver apenas uma meia dúzia a juntar-se no único café-taberna num raio de muitos quilómetros. Há uma família que já corta lenha para o Inverno e a amontoa na frente da casa, imagino que daqui a pouco não poderá haver noites sem a lareira acesa, já que a humidade se faz já sentir ao cair de uma tarde de fim de Verão.

Naquele lado da serra não há aldeias idílicas como as que veremos depois com a placa identificativa da rede das aldeias de xisto, são apenas casas à beira da estrada, umas mais feias do que outras, a maior parte substituiu o granito ou o xisto pelo cimento, era isso a modernidade e a comodidade, contudo, esses materiais mostram a sua erosão e falta de adaptação às condições locais. De quanto em quando uma casa sobressai pela sua monumentalidade e cor e adivinhamos que atrás dela estão portugueses que foram para a França ou para os Estados Unidos. São também eles que vemos nas praias fluviais, grandes famílias que Agosto continua a juntar para matarem juntos a palavra saudade.

Apesar da moda do doce da terra se ter disseminado por todo o território (segundo a senhora da padaria foram eles a inventá-lo há meia dúzia de anos pois não havia nada que as pessoas pudessem levar...), é junto à arca de gelados que se mata a fome de açúcar e de mundo. Afinal um corneto é igual em qualquer parte deste país, com ele vem a ilusão de que somos todos iguais, embora a única coisa realmente comum seja esse torpor de Agosto embrulhado em desejo de escape e felicidade.

~CC~

segunda-feira, 2 de setembro de 2024

Creio que o seu nome é melancolia

 

Ver as nuvens de cima entontece-me, a última vez que aconteceu estava provavelmente num avião. Tenho a sensação que estou longe da terra e de tudo, imersa num lugar onde a neblina esconde por certo bruxas e fadas que gostava de saber escutar. Enviaram por certo o gato branco que por aqui vadia e fazem acender o candeeiro cuja luz sensível supostamente só se devia ligar à visão humana. Dos veados, apenas um bebé, só ele não ganhou ainda o medo dos humanos, corta-nos o caminho da estrada, muito rápido.


A vista é de cortar a respiração, de tão bela e ampla mas pôr do sol ocorre quase sempre imerso na mesma neblina que amiúde me invade o coração, creio, contudo, que nesse local específico, o seu nome é melancolia. 

~CC~

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Montanhas mágicas

 

Estive num lugar em que as pedras das casas isolam do calor e do frio e ninguém as deita abaixo para construir novo e em betão. Em todas as fontes há agua fresca e potável e os meninos saem à hora do almoço com um jarro para a ir buscar directamente para as mesas. Agora há jovens e meninos porque é Verão e todos vieram, lá mais para diante ficarão ainda alguns pois há projetos que mantêm aqui a possibilidade de vida. Dois corações fazem tudo pulsar, o teatro de Montemuro e a tecelagem das Capuchinhas. Ainda é longe mas quando começaram a lavrar tudo isto, era ainda mais longe, muito longe. Há amoras nos caminhos e um cantinho onde pousam os passarinhos, e até nós podemos ser passarinhos.

Estive num lugar em que se procura misturar a memória com a crítica e com o riso, teatro inteligente mas popular, que quer trazer as pessoas e falar com elas ao ouvido, é um teatro que conta histórias, parece trivial mas já não o é assim tanto. Entre o performativo e o panfletário, muito se perdeu dessa origem.

Estive num lugar em que havia um céu salgado com peixes a nadar no céu. Estive num lugar em que um cisne ferido se vinga da humanidade transformando crianças em cisnes até que uma menina é capaz de a travar, fazendo-a perceber que nenhuma vingança mata a dor. Estive num lugar em que há um juiz tonto a fazer lembrar outros reais, tão ou mais tontos que aquele. E entre tantas peças, ainda houve cinema ao ar livre e momentos de debate e conversa e que lindas eram aquelas senhoras que vieram explicar que aldeia é conforto e alegria e que a morte se chegar aqui, chega de mansinho, com  a paz que emana das montanhas.

Fui pela segunda vez ao Altitudes para ser novamente feliz ou ainda mais feliz. Com um acréscimo de estar calor em vez do frio que oito anos antes me tolheu o corpo e sem a indisposição permamente que então o sacudia (era a doença a manifestar-se).

E tenho esperança que haja terceira. Não acredites que não deves voltar a um lugar em que foste feliz, creio que é ao contrário. Arrisca, volta. 

~CC~



segunda-feira, 19 de agosto de 2024

Dói-me a tua ausência

 

Fez ontem uma semana que partiste. Precisei deste tempo para te escrever. Como nos chocam as coisas que sabemos que vão acontecer?! Como é que nunca estamos preparados? Talvez porque não há preparo possível. É verdade que tu eras já um milagre, com a tua doença a maior parte desaparece num ou dois anos. Talvez fosse isso que nos fizesse arrastar a esperança, ou a tua força e resiliência. Este Outono, este Inverno, com chuva, vento, frio, pensava amiúde em ti e nos obstáculos que enfrentavas para ires à fisioterapia e tentares recuperar a marcha que perderas. Não era apenas um lance de escadas num prédio sem rampa e cujo condomínio se tinha recusado a fazê-la como obra colectiva, era o mundo representado nessa recusa, um mundo que não dá aos mais fracos grande importância.

Esta era a tua cidade, às vezes dizias-me que se notava bem que eu não era daqui, mas ajudaste muito a que me integrasse, a compreendesse e sobretudo me sentisse aqui mais acompanhada. Fiz do teu rio o meu rio. Viste crescer a minha filha e ajudaste nesse crescimento com o teu sentido crítico e dose certa de humor, até te renderes à miúda com quem conseguias cada vez mais conversar de igual para igual. Partilhava-a contigo com muita alegria.

Chorei e ri contigo, duas coisas que só fazemos quando a cumplicidade é o que nos une a outro alguém. Acolheste sempre todas as pessoas que amei e chamei companheiras, ajudaste a pensar essas relações, a superar os medos, as falhas, os desamores. Estou grata pelo momento em que sendo eu uma miúda alternativa (nessa altura dizia-se freak) e tu uma miúda betinha nos encontrámos, superando todas as distâncias que parecia haver entre os nossos mundos. Mais à frente surpreendia-me com alguns dos teus pensamentos, bem mais alternativos que os meus e sentia-me amiúde conservadora. Demos tantas voltas ao sol, aprendemos tanto. Dói-me a tua ausência. 

E tenho a dizer-te que te esqueceste de me dar a receita do bolo de amêndoa que sabias que eu adorava.

~CC~


quarta-feira, 7 de agosto de 2024

Delta aquáridas, Perseidas e afins

 

Parece que a terra anda a cruzar-se com chuvas de meteoros que ora provêm da Delta Aquáridas, ora da constelação de Perseus, originando céus estrelados e belos, por vezes misteriosos. A isso se juntam as poeiras do Deserto do Saara que antes não chegavam cá com esta facilidade. As temperaturas sobem até nos asfixiar mas nem sempre desembocam em noites amenas. O vento não para. 

Estou a buscar uma explicação cósmica para os últimos Verões assombrados que tenho tido. Quando nos falta a razão, quando o coração sucumbe, é melhor olhar para as estrelas, conversar com elas. Invariavelmente quase todos os Verões da minha última relação de amor eram difíceis, estava com alguém que não gostava de férias, de passear, de sair. Foram poucos os Verões felizes, num ou noutro conseguimos, mas não são muitas as memórias boas, quando as crianças eram pequenas eu esforçava-me imenso por elas. Como não podia deixar de ser terminou num Verão, na sequência da discussão mais idiota que tive com alguém. Aquele foi um Verão muito triste, abrupto, tirei tudo de uma casa, coisas de anos e anos e nunca as consegui arrumar, metade foi fora. O perfume das goiabas daquele quintal perdurou muito tempo na minha memória, até se desvanecer e deixar por completo de doer. 

No Verão passado, com o agudizar da doença da minha mãe, caminhei sobre um fio muito fino, tentando equilibrar-me. Foi muitas vezes duro e solitário cuidar e estar com ela. Perdi-a no fim do Verão, na entrada do Outono. Agora a minha amiga, quase uma irmã, definha de dia para dia, sabemos todos que a vamos perder e ela também sabe, está consciente e triste. Talvez alguma estrela me tenha dito que este ano eu não devia ir para longe, devia evitar aeroportos e viagens, como tal reparti as férias por vários bocadinhos de ir e vir. 

Sou outra vez equilibrista no fio de arame. Mas de tanto praticar a arte, creio que já a domino e que não irei cair. Só preciso às vezes de parar tudo, desligar o computador, a televisão, a rotina. Preciso de noites de ver estrelas e de manhãs em cafés desconhecidos, de pequenos almoços lentos, de almoços de conversa longa, de praia mar e de praia rio e de livros com cheiro de papel, de abraços de pessoas boas.

Perdoem-me assim se não vos visitar nas vossas ruas virtuais e se esta rua ficar um pouco ao abandono, deixo-a para que os gatos possam vadiar. Tenho receio de usar a palavra férias, de tanto que me massacrei com ela ou de tanto a ter idealizado, já nem a saboreio como antes. Digo-vos antes que é tempo de Perseidas e afins. 

~CC~



sábado, 3 de agosto de 2024

Não sei ser

 

Leio finalmente alguma coisa dessa senhora, prémio nobel de 2022, de seu nome Annie Ernaux. Comecei pelo "Os anos", que ganhei no meu aniversário do ano passado (a pedido) e nem tinha aberto. Percebo os que amam e os que não amam esta escrita e estou a situar-me no meio. Mas não sei se todos os outros são assim, hei-de ler pelo menos outro. 

Para mim é como um manual de antropologia urbana em que ela própria é parte integrante, nesse sentido identifico-me, se calhar também eu o faço na escrita aqui. Contudo, se fosse eu, registava também os anacronismos de época, enquanto ela traça um quadro coerente em cada etapa, no qual ela se integra em pleno, vestindo, consumindo, adoptando aqueles hábitos e práticas. Não há marcos estanques entre as várias décadas, subsistem em cada uma, traços de uma outra, como vestígios que perduram muito além do que seria expectável.

Na praia que mais frequento aqui perto de casa há um café-restaurante muito século XXI, todo ele branco, a cheirar a IKEA, sempre com um bolo vegan e sem açúcar, a par de coxinha de frango bem brasileira. Mais adiante há uma barraquinha de cores chamada banana splash que vende granizados, um deles boca azul, ali é todo um mergulho nos anos 80 do século passado. Eu que fui adolescente nos anos 80 nunca gostei de granizados nem vivi o que era suposto viver nessa época, nunca entrei por exemplo num parque aquático. E também não como bolo vegan nem coxinha. Se calhar sou eu que estou errada e flutuo entre tempos sem me entregar a nenhum. Se calhar não sei ser de uma época.

~CC~




quinta-feira, 1 de agosto de 2024

Eram dez senhoras...

 

Eram dez senhoras muito idosas ou talvez umas mais outras menos.

Todas tinham fatos de banho pretos, embora de modelos diversificados, e só uma caminhava amparada na monitora que com elas ia a banhos.

Caminhando com os pés na água, umas sorriam e outras estavam muito sérias.

Habituada a ver por ali bandos e bandos de miúdos todos com um sinal de identificação comum, nunca tinha visto um bando diferente, vindo de lar ou centro de dia. E ali estavam elas, todas mulheres, todas de fato de banho preto. 

De repente a voz da senhora da loja: compre um fato de banho preto, fica sempre elegante. 

E eu comprei antes um biquíni com flores vermelhas e folhas verdes escuras. Talvez só agora faça sentido a escolha, estava afinal a adiar a minha entrada no bando das dez.

~CC~


segunda-feira, 29 de julho de 2024

Nenhum Verão devia ter dias difíceis

 

De que lhe adianta a minha tristeza? De que lhe adianta a minha ansiedade? Porque não vou outra vez dançar, talvez isso pudesse adiantar-lhe mais.

Mas agora não posso, não consigo. Até o barulho me incomoda, como a incomodava o latir dos cães na esplanada, era um dos seus tormentos.

Tenho que me animar eu sei, até porque assim triste não consigo visitá-la, lá nesse lugar em que algumas pessoas encontram a saúde e outras já não conseguem, não podem fazê-lo, só é possível minorar o sofrimento, conseguir a paz.

A tristeza eu tolero, sei-a, conheço-a, dou-lhe a volta. À ansiedade é mais difícil, ainda não lhe decifrei o código genético. Nenhum Verão devia ter dias difíceis. 

~CC~

sábado, 27 de julho de 2024

A menina dança?!

 

Foi quando fiz quarenta anos a minha última dança com todo o corpo, livre, cheia de vontade e completamente imune aos comentários que podiam advir da minha grande falta de talento. Dança com música cabo-verdiana, sem obrigação de dançar a par, havia mulheres com mulheres, adultos com crianças, muita gente a dançar sozinha, pouco importava.

Depois vieram lentamente os medos, as tentativas de fazer bem, de acertar o passo, a sensação sempre presente de ser avaliada e não conseguir, não estar à altura. Vieram as lições que quanto mais assertivas eram mais me inibiam. Nunca mais fui feliz a dançar, muito embora tivesse até procurado ocasiões em que isso acontecia de forma colectiva e podia passar despercebida. De insucesso em insucesso nos tornamos incapazes.

Até ontem. Um baile inteiro com um tributo aos Beatles. Um grupo informal, erámos uns 12 unidos por uma amiga comum, acho que quando fomos nem sabíamos quantos seríamos, eu pensava que seríamos três. E o grupo ampara-nos na queda, protege-nos da imperfeição, liberta-nos. Volteamos entre nós divertidos, sem avaliação disto ou daquilo, há apenas um único casal, todos os outros são apenas amigos. Nenhum de nós é novo e todos temos noção que o tempo escasseia, por isso queremos perder o medo. E há dois que não dançam, ficam por ali na varanda à conversa. E ninguém os chateia, ninguém os recrimina, ninguém os obriga, ninguém diz que se vieram ao baile é para dançar. 

A menina dança?! Sim, hoje consegue. Mesmo que amanhã não o faça. Quanto tempo fica a alegria a morar nossas células?! Preciso que perdure um bocadinho.

~CC~


quinta-feira, 25 de julho de 2024

Longos aros de fumo

 

Olha que engraçado, ainda se pede lume...fiquei tão estupefacta com o pedido que nem sabia o que responder, talvez por nunca ter fumado. 

Lembrei-me da minha infância e do meu pai, dos seus rolos de fumo no ar, uns atrás dos outros, aros que por vezes eu furava com os dedos, era tão belo aquilo. Da tentativa do meu pai para ensinar a minha mãe a fumar, pois as mulheres belas e finas faziam-no. Dos cigarros dos meus professores nas aulas na licenciatura de Psicologia, como se deles precisassem sofregamente para o escrutínio do nosso interior. Do meu primeiro grande amor com um beijo sempre a cheirar a fumo, que só por paixão eu suportava. E do cigarro da minha amiga, quase sempre apagado depois de duas ou três passas. 

Hoje que tanto sabemos sobre o seu malefício, que dores os levarão a buscar aquele apaziguamento. E tenho mais compaixão do que zanga, mas isso ocorre-me em quase tudo, espero que a idade não me leve toda a indignação.

~CC~


terça-feira, 23 de julho de 2024

Atendimento excessivamente personalizado

 

Procuro cada vez mais comprar nas lojinhas pequenas no centro e nas artérias laterais da minha cidade. Se aqui não se aplica o princípio do produtor-consumidor, há por certo outras lógicas, outros produtos, outra forma de encarar o cliente.

Mas às vezes as coisas não correm como esperamos.

Procurando um fato de banho ou um biquini, fiquei encantada com a forma como aquela montra os mostrava. E entrei. Directa a mim a senhora nem me deixou explorar o que havia, primeiro quis logo mostrar que era a proprietária, depois disse que me ia orientar na procura e por certo íamos achar "juntas". Até lhe perdoei o exagero, mas piorou quando ela tirou a fita métrica e sem qualquer aviso começou a tirar-me as medidas. Entrou sem aviso na minha bolha dos 20 cm e logo para medir o peito. Afastei-a não com toda a vontade que desejava e retorqui que sabia o que me servia, não era preciso medir. Ficou chateada e empregou uma qualquer palavra francesa para definir o seu trabalho de apoio, que era a sua missão profissional.

Nada mais correu bem a partir dali. 

Não só não comprei nada, como me esqueci dos óculos escuros e tive que lá voltar. Mas o pior foi a vontade que me ficou de voltar às lojas onde entramos, nos ignoram, provamos o que queremos e ninguém sabe que existimos. Afinal não gosto de atendimento personalizado, ou pelo menos excessivamente personalizado.

~CC~




domingo, 21 de julho de 2024

Chás não chega?!

 

- Então?

- Vou indo

- Tens tratado bem do teu corpo?

- Do meu corpo? Mas agora?

- Sabes bem do que falo, expliquei-te o que fazer, marca consulta novamente.

Estes gurus estão por todo o lado, este combinava o corpo esbelto com uma longa trança. Pelos vistos dava consultas. Qualquer um dá. Os mais pobres vão para os cultos evangélicos com mil e uma nuances. Os mais ricos para os espirituais, se lhes disserem para andarem todo o dia com um cristal no bolso ou para comerem sempre pitaia ao jantar, fazem-no. Antes, pagaram 80 euros por uma consulta. Bem sei que o poder da mente é coisa desconhecida e muito pode. Ainda assim, custa-me a ignorância crédula explorada. 

Fico-me pelos chás e pela militância moderada no grupo das plantas.

~CC~



quinta-feira, 18 de julho de 2024

Perdoem-me todos os outros

 

Pudesse eu ter tempo para escrever tudo o que guardo nos meus olhos e no meu coração. Uma parte ínfima chega aqui. Mas mesmo quando escrevo só para dentro de mim, é enorme o bem que me faz. São desenhos e desenhos de histórias, tantos rostos, tantos diálogos, tantos lugares, tanta dor, tanta felicidade.

Por exemplo, aquele lugar. O túnel debaixo do prédio na cidade cada vez mais turística. Nesse túnel vive alguém que tem uma cama no chão miraculosamente arrumada, uma pilha de t-shirts impecavelmente dobradas e dois pares de sapatos alinhados. Há um saco também, deve conter comida ou utensílios de higiene porque todas as coisas estavam limpas. Uma dignidade tão grande naquele lugar e a confiança em tudo deixar assim na sua ausência. É assim que vivemos, paredes meias com túneis que são casa, mares que são cemitérios e bombas que caem e matam sem sentido. Tragédias que nos arrepiam num minuto e que no outro esquecemos, afogamos a nossa impotência e amortecemos a nossa dor. 

E a tragédia que fica e nos corta o coração muito e muito tempo é sempre a de alguém que conhecemos e a quem chamamos irmão, mãe, amigo/a ou amor. A tua minha amiga, a tua. É a tua que fica a doer-me, perdoem-me todos os outros. Perdoem-me esta imperfeição.

~CC~

domingo, 14 de julho de 2024

Não te demores

 

Tu dizias: não te demores.

E eu aprendi assim a não me demorar, a chegar à praia e entrar logo na água, independemente da sua temperatura para depois secar e me vir embora.

Tu dizias: não te demores

E eu deixei de ir às praias mais longe, onde sabia poder haver trânsito no caminho, onde o estacionamento era incerto, onde o tempo podia não depender de mim.

Tu dizias: não te demores

E eu sabia que não podia fazer refeições demoradas fora, levar livros entusiasmantes em excesso, buscar a beleza noutras cidades próximas, nas feiras, nos festivais.

Estar aqui nos últimos dois anos contigo foi sempre não me poder demorar, esperavas-me para o almoço, para o lanche, para o jantar. 

E agora que posso demorar-me e já não me esperas, já não o sei fazer.

~CC~



sábado, 13 de julho de 2024

Era só para falar dos pássaros do sul

 

De lugar em lugar faço a viagem. 

Em cada um deles já houve um pedaço da minha vida inscrito, o encontro é marcado por essa memória e, contudo, o presente de cada um desses espaços é já outra coisa. Disponho-me a fechar os olhos e caminhar até ao sabor antigo, vejo-me, vejo-o, vejo-os. Depois abro os olhos e encontro a outra que eu sou, os outros que eles são. E das pessoas novas que me apresentam ou que se apresentam, registo pouco. Tenho pena que assim seja, como se a minha capacidade de acolher estivesse diminuída, não obstante a receptividade a todos os diálogos que se constroem e a apreciação do interesse que cada pessoa em si tem. Não há dificuldade em ir e em estar, mesmo quando vou sozinha ou estou com grupos que mal conheço. Mas passar desse limiar, confiar, enlaçar, navegar...nem consigo perceber a facilidade que os outros têm nisso, como do nada tecem a teia e nela se enredam. Em geral eu preciso do tempo longo e envolvente, seja na amizade ou no amor.

Já na conservação dos afectos sou mestre. O gosto que tenho em encontrar os amigos, saber deles, dos filhos, do trabalho, perco-me nessas conversas de revisitação olhos nos olhos, quero acolhê-los no meu abraço.

Por isso me doem as ausências, os lugares apagados, as transformações radicais dos sítios, espaços vedados. 

O meu dedo toca sempre no terceiro andar de certo prédio, não sei quando se apagará essa memória que o corpo tem. Às vezes também eu penso que poderia ser leve e ligeira como uma pena, inclinar-me para essa superficialidade que parece tornar as pessoas felizes. Mas sei que nada em mim é assim, tudo é profundo, denso e grave, tudo o que amo tem que ter consistência. Felizmente também me sei rir e até de mim e da minha gravidade, caso contrário talvez fosse sempre triste.

E isto era só para falar dos pássaros do sul. 

~CC~

 

sábado, 6 de julho de 2024

Cogitação de futuros

 

Ontem fui pela segunda vez entrevistar um pequeno grupo de imigrantes de origem asiática num meio rural de pequena dimensão. Da primeira vez comovi-me. Mas desta segunda vez indignei-me. Vim de lá às 19h30m e deixei a televisão desligada, não fui capaz de ver nada. Fiquei assim um bom tempo no silêncio e triste. Ali está a desordem do mundo no seu pleno. Entre a zanga, a esperança, a gratidão, eles vivem sem futuro, a palavra amanhã não é pronunciável. 

Ajudou-me que a rua também estivesse totalmente silenciosa, durante uma duas horas nada se ouviu, quase parecia o tempo da pandemia. E depois voltou o ruído mas sem festa e adivinhei porquê. Pouco a pouco voltei a mim e esbocei um sorriso com a série do canal 2, vivida num hotel à beira mar. E adormeci. Algum tempo depois acordei com os sinais de ansiedade que de quando em quando me visitam sem nome, sem origem conhecida, sem destino aparente. É a sensação de suor, tremor e falta de ar. É levar até ao limite para não tomar o comprimido e entristecer com cada capitulação que se faz ao químico. Penso no que o poderia substituir. Um quintal para ver as estrelas? Um lugar mais fresco para morar? Alguém a quem ligar? Um tempo sem trabalhar? Voltar com muito mais regularidade ao yoga? Psicoterapia?

Adormeci na cogitação de futuros e acordei mais tarde do que o habitual. E senti-me leve outra vez como as pessoas dizem que pareço estar, há quem diga mesmo que nunca me viu tão feliz, outros tão nova e há mesmo quem, como esta manhã, na loja, peça o segredo.

~CC~


sexta-feira, 5 de julho de 2024

Afinidades

 


Olho para ela demoradamente, vítima do incêndio de há dois anos nestas encostas de Palmela, que percorremos agora com quem anda a proteger cada carvalho, cada sobreiro novo que nasce. Há quem lhe pergunte qual a razão para não terem cortado estas árvores, algumas são só um tronco carbonizado na paisagem. É preciso esperar, disse. Algumas renascem por si, vão à luta.

Olho para esta árvore e sinto uma grande afinidade, apetece-lhe segredar-lhe ânimo e força e dizer-lhe: vais conseguir, nós conseguimos. 

~CC~





segunda-feira, 1 de julho de 2024

Adeus Gigantes

 

O que um pintou, o outro podia cantar.

Deixaram-nos dois gigantes.

Um nas Artes Plásticas, outro na Música.

O primeiro, Manuel Cargaleiro, conheci tardiamente mas foi com absoluto deslumbramento que visitei em Maio o seu museu em Castelo Branco. Foi mesmo o último museu que visitei e perguntei por ele ao guia, disse-me que estava vivo e cognitivamente capaz, embora frágil fisicamente. Teria fotografado quase todas as obras, não fora o tempo não deixar, apetecia-me trazê-las comigo para vê-las depois, saboreá-las.

Fausto Bordalo Dias maravilhou-me ainda adolescente, nos primeiros acordes de Rosalina. E continuei absolutamente maravilhada de disco em disco, tendo visto poucos concertos ao vivo (não era coisa que ele gostasse), apenas um, ao qual junto o último concerto do Zeca Afonso no coliseu. Coloco-o a par do Zeca, no mural dos maiores. Era ainda novo, parte com 75 anos, mas se a doença o tomava de dor, só podemos pensar que a morte deve ser sido apaziguadora. 

Nós, nós é que ficamos cada vez mais pobres. 

Adeus Gigantes.

~CC~





sábado, 29 de junho de 2024

Antibiótico natural

 

No fim da caminhada, ela disse:

- Vou dar-te um antibiótico natural...

Como isto de caminhar com grupos que incluem muitos alternativos me traz sempre grandes surpresas temi pela mezinha que viria...um caldo de urtigas? chá de cardo? iogurtes feitos com vinagre?

Mas ela chegou mais perto e abraçou-me. Achei graça e recebi o abraço...e quando ia deslaçar, ela disse: não, tem que ser 3 minutos para fazer efeito.

Não tenho a certeza se será mesmo um antibiótico natural, mas por certo há coisas piores.

~CC~

quinta-feira, 27 de junho de 2024

Teimosias

 

- Mas a senhora vai jogar para sexta feira, sabendo que há 216 milhões que podem sair já amanhã?!

(eu já estava irritada porque ela estava a atender uma cliente que só falava bem do senhor mal educado que interrogou a mãe das gémeas, nas suas palavras, o único corajoso daquele parlamento...)

- Há regras sabe, eu só jogo às vezes e só e sempre à sexta feira. É só quando penso muito no Alentejo, aquele onde a GNR em tempos matou uma senhora de nome Catarina e em como gostava de lá morar (olhos fitos na dita cuja cliente).

- A senhora é que sabe mas eu acho que amanhã vai sair em Portugal.

E assim foi, devia ter-lhe pedido também a chave, já que ela falava com os deuses. Assim, o ganho até hoje foi um máximo de doze euros e tal. Enfim, chega para atravessar o rio Sado até Tróia, uma viagem que encareceu ao preço do casino do lado de lá e de quem o governa.

~CC~


domingo, 23 de junho de 2024

Fio de tecer

 

Foto de uma atividade dinamizada pelos estudantes

Foi um ano lectivo difícil, trabalhoso e por vezes sofrido. Houve uma turma da qual gostei quase de imediato e afinal se revelou uma desilusão. Mas dos sonsos, ainda por cima se adultos, não reza grande história. Foi um período demasiado curto para poder inverter a história de um desencontro que não percebi de imediato, como não houve frontalidade para gerir o presente, o futuro irá encarregar-se de me atenuar a dor das coisas que não correm bem. 

E houve outra, de gente bem mais miúda, que após duas aulas me causou desde logo perturbação pelo seu estilo conflitual e por vezes até violento (connosco mas sobretudo entre eles), grande parte deles sem grande interesse em coisa nenhuma, identificando ali problemas que extravasam muito o ensino e a aprendizagem. E com estes fiquei um ano inteiro, muitas vezes interrogando como poderia trilhar o caminho, avançando e invertendo, analisando e enfrentando. Mas houve a verdade, essencial para mim em qualquer relação, a capacidade de dizer olhos nos olhos. E não terminou num oásis de felicidade, nem com todos a dizer que afinal compreendiam e apreciavam o que tínhamos tentado construir com eles durante um ano inteiro, mas grande parte sim. Deixaram mensagens que por vezes me toldaram os olhos de água. A lenta construção das coisas é desde sempre o que me interessa, na profissão, no amor, em tudo. 

É o tempo, com o seu fio de tecer, caso queiramos aprender.

~CC~


quinta-feira, 20 de junho de 2024

O dia mais longo

 

Pudesse eu dançar todo este dia de Solstício de Verão. Pudesse eu fazer prolongar os dias grandes e o entrar tardio da noite. Pudesse eu trazer sempre uma chuva para cortar os dias quentes e sufocantes. Pudesse eu fazer como ontem e comover-me feliz a cada vitória sofrida e prolongada. Pudesse eu dar a mão a alguém sem pensar no que vem a seguir, só porque sim e apetece, tal qual uma criança quando faz um novo amigo na praia. Pudesse eu festejar por muito mais o dia maior do ano, agora interiormente mas quem sabe futuramente correndo atrás dos lugares em que a festa se faz a sério.

Imagino-me assim uma discreta velhota caçadora de festas de Solstício de Verão.

Quem puder, não hesite.

~CC~

segunda-feira, 17 de junho de 2024

Por onde passa amar um país?!

 

Gosto muito deste país. 

Mas não vibro nem um bocadinho com a selecção de futebol, é-me quase indiferente. Talvez seja uma pessoa estranha, será que há mais por aí?

Prefiro alimentar o meu amor com sardinhas e cerejas. E com esta largueza de horizontes voltada para o mar. Ainda esteja a falhar e muito nas três matérias primas referidas. E claro que há mais.

Por onde passa amar um país?

~CC~


sábado, 15 de junho de 2024

Geografias

 

Passamos anos a trabalhar na mesma instituição usando apenas o cumprimento trivial, com a distância que se parece impor entre quem tem pouco em comum ou julga que tem. Mais ainda, antipatias criadas muitas vezes à conta do que outros nos disseram ou contaram influenciam o modo como vemos ou nos vêm.  Consolidam-se geografias de proximidades e distâncias, tantas vezes sem fundamento.

Até que um dia há uma pequena tempestade e parece que nos vimos pela primeira vez debaixo de uma árvore, de um guarda chuva, de um qualquer abrigo. Há uma mão disposta a agarrar-se a uma outra que nunca agarrou. Não imaginava já poder viver novas geografias de amizade por dentro do trabalho e ao mesmo tempo consolidar outras em jornada de maior cumplicidade. Não imaginava um ano letivo a acabar assim, a dançar debaixo de um sobreiro, acho que sobretudo não imaginava deixar de ter medo de estar aqui, mercê de tantos anos em que a pressão para me fazer sair foi muito grande. Pouco a pouco a gente de mal vai perdendo terreno e a gente do bem vai-se juntando. Fiz bem em resistir para poder chamar casa a este lugar em que se passa mais de metade da nossa vida. Quero continuar a ter coragem para novas geografias.

~CC~


quarta-feira, 12 de junho de 2024

Amolecedores

 

Encaixar os erros como jóias preciosas numa caixinha. Mas os que guardo são os que vejo de olhos bem abertos e às vezes com alguma dor que são mesmo erros meus, não basta que os outros digam, contudo, fico atenta se o dizem, avaliando o peso da verdade. Corrigir torna-se depois um desafio, uma rampa de lançamento, um desígnio. Também guardo outras jóias, as das palavras que dizem coisas boas, aquilo que fiz bem, o que consegui, tantas vezes com esforço. E agora emociono-me quando me dizem coisas dessas, muito mais do que alguma vez aconteceu, penso se isso é sinal da minha força ou da minha fraqueza. Mas também fico mais triste quando me dizem coisas más.

Suspeito da idade ou da Primavera, dois amortecedores da alma.

~CC~



segunda-feira, 10 de junho de 2024

Irmã

 


Não aproveite junho apenas para ir aos Santos Populares ou à Feira do Livro de Lisboa (sem dúvida, dois bons programas), vá também ao Teatro. Este não é certamente um espectáculo fácil de ver, mas também não o é aquilo que se passa nesse lugar do mundo, vejamos como nos vão dizer da dor de existir tanto desencontro feito guerra. 

Tenho duas irmãs e não têm nome de país mas toda a vida lutei que as nossas diferenças se tornassem amor em vez desamor.

~CC~





domingo, 9 de junho de 2024

Vamos votar?!

 

Mãe, já foste votar?

Hoje pela primeira vez, se estivesses entre nós, poderia fazê-lo contigo. Nunca aconteceu por morarmos em locais diferentes. É tão inevitável lembrar-me de ti. É tão bom sentir saudades tuas, são doces e não um grito por dentro, são as saudades de quem se decidiu pelo amor após tantos anos de afastamento. Tanto que me apetecia ligar-te hoje pois quase até ao final da tua vida a lucidez que te acompanhou ainda ditava interesse por estes processos eleitorais, embora muito menos por aquele que hoje se joga, a Europa não era o teu lugar.

Talvez achem estranho misturar amor e decisão na mesma equação. Mas aprendi a fazê-lo, não deixar que o amor seja dor e como tal não amar quando ele comporta lá dentro esse gaz mortífero. Se o amor não é bom, não tem aquele grau de alegria, cumplicidade e desafio, não vou atrás, por mais que vislumbre um brilho nos olhos e me pareça poder arrastar-me. 

Mãe, já foste votar? Faço por não entristecer e te celebrar este domingo, tinhas um sorriso tão bonito.

~CC~


Nota: Conheci ontem pela primeira vez em concerto do Festival Língua Terra, que beleza.


 



sexta-feira, 7 de junho de 2024

E os olhos encheram-se...

 

Os olhos encheram-se de beleza na contemplação do jasmim centenário, rolaram húmidos ante a beleza das rochas e das mãos humanas que com eles privaram em estreita sintonia e por fim pasmaram perante o louceiro que sobrou dentro da casa agora vazia. 








As histórias dos lugares intricadas nas histórias das pessoas são sempre o alento que me faz querer respirar, querer partir, querer ficar. Viajar é guardar lugares dentro de mim para os desdobrar e saborear quando deles preciso. Não há paraíso, mas há paraísos, no entanto, para encontrá-los temos que sair de nós, não moram dentro dos compartimentos fechados em que, se deixarmos, a vida se constrói. Eis o que nunca perdi, salvo nos dias de maior cansaço, a vontade de conhecer, não apenas as paisagens,  sobretudo as vidas que nelas se entranham. 

Nenhuma amarra me prende já, vou sozinha, vou com simples conhecidos, vou com queira acompanhar-me ou quem eu possa acompanhar e sinta que vem por bem, não sei quanto tempo mais a vida me brindará com a sua presença em mim e da morte nada sei nem quero saber.

~CC~




segunda-feira, 3 de junho de 2024

Amores trágicos

 


Portas de Rodão

Em puro contraste com a leveza que actualmente se apregoa como o caminho certo para um amor sem sofrimento, a História está cheia de amores profundos e trágicos.

Deste lado do rio, já conquistado aos mouros, vivia uma rainha cujo rei raramente estava no pequeno castelo, envolto nas muitas batalhas que havia a travar. Aos mouros, do outro lado do rio, não escapava tal solidão e numa das suas incursões levaram-na. Deste lado do rio, a rainha tinha sido raptada, do outro lado do rio a rainha deleitava-se com uma vida mais animada que na sua parca corte. O rei cristão, no seu regresso, depressa decidiu resgatá-la. Como o seu exército era parco para tal empreendimento, optou por se mascarar de mendigo e ir buscá-la. Para sua surpresa, a rainha não quis voltar, dizendo-se mais feliz daquele lado do rio. Uma humilhação que o rei não pode aceitar. Voltou para casa ofendido e rancoroso, decidido a arranjar reforços e voltar para a buscar, já não por amor (se alguma vez foi essa a razão) mas por despeito. E conseguiu. Contudo, no regresso a casa não era o resgaste do amor que estava nas intenções do rei, era a morte da rainha. E assim, decidiu que seria atirada por estas escarpas abaixo até ao rio. Consta que nos sítios onde o seu corpo tocou numa mais cresceu erva.

Curiosamente na capela um pouco abaixo ia celebrar-se um casamento. Espero que na sua história nada desta lenda se repita, ainda que fique sempre curiosa por alguém escolher estes sítios recônditos mas sem dúvida belos para se casar.


Que a sua história possa habitada pela paz do sítio onde se celebra.




Nota 1. Tudo nesta história pode ser verdade ou inventado, mas não fui eu que inventei. Há uma festa que aqui se comemora com base na lenda que referi, mas na verdade não sei qual o motivo, se o resgate da rainha, se a sua morte às mãos do rei cristão. Provavelmente já ninguém sabe.

Nota 2. Se não acredito em amores leves, também não os desejo com este peso, se é que é de amor que esta história trata, suspeito que possa não ser.

quarta-feira, 29 de maio de 2024

Que peso aquela leveza

 

Posso compreender que as pessoas inventem novos modos de viver o amor para além da estreita norma que determina uma casa e um casalinho, preferencialmente um menino e uma menina. Alguns ultrapassaram mais fronteiras que construímos como cimento da relação, tal como a fidelidade. 

Contudo, o que me é dado ver dos novos formatos é pouco entusiasmante, normalmente entra em ruínas ao primeiro embate ou é tão forçado que parece mais um bailado clássico em que evitar cair é o principal.

No outro dia vi lágrimas a esconderem-se na cara de alguém que muito gosto, não podia chorar porque naquela relação livre não havia lugar para o choro, para a tristeza, para a raiva, tinham combinado ser leves. 

Que peso aquela leveza. 

~CC~

domingo, 26 de maio de 2024

Um dia faremos as pazes

 

Eu só queria acolher o vírus da alegria e estava quase a conseguir construir-lhe um lugar dentro do meu coração para ele morar. 

Mas o meu corpo é muito mais plural e decidiu tornar-se o espaço de outros vírus sem tanta nobreza e efeito positivo, sei que ele cede à exaustão de um ano de trabalho por esta altura, sempre por esta altura. Por todo o lado a sua baixa imunidade me mostra uma vulnerabilidade à qual não estou disposta a ceder, pequenas maleitas surgem por todo o lado, causando incómodo e dor.

Está tudo ao contrário. Aos 20 anos eu possuía uma melancolia muito distante da euforia dos da mesma idade e o corpo era uma circunstância ainda assim feliz e capaz de subir montanhas. Agora que eu deixei no sofá da auto-análise o que entupia a minha disposição para a felicidade, o corpo é amiúde um entrave para eu abrir os braços e voar.

Mas também e sei-o bem há corpos piores, mais incapazes, mais difíceis, mais doentes, vejo-os, lido com alguns assim. Ainda assim lido mal com os entraves do meu. 

Um dia faremos as pazes, espero.

~CC~





quinta-feira, 23 de maio de 2024

É doce e arde

 

Cresce a lua até se baloiçar no meu coração, tão bela que estava esta noite. Traz-me tanta luz que até me esqueço que a sua intensidade anda a par com as ondas cada vez mais densas de pólen que me fazem espirrar por dentro dos dias e me trazem os olhos inchados como se tivesse chorado de uma só vez todas as dores que pairaram numa vida.

É assim que a vida tem andado, transbordante e a passar a uma velocidade estonteante. 

Para duas coisas boas, invariavelmente uma má. Para duas pessoas boas, invariavelmente uma má. Proporção nem sempre coincidente com um dia ou uma noite. Às vezes durmo pouco de noite quando o da se cruzou com uma pessoa má. Agora é muitas vezes a mesma pessoa má, ainda assim é do campo profissional e um dia irá esfumar-se, antes assim que ser da vida pessoal.

A Primavera é flor na pele, é doce e arde.

~CC~


domingo, 19 de maio de 2024

Unicórnios

 

Os dias melhores são aqueles em que me deixo ficar apenas mais um bocadinho na esplanada de um café qualquer, espreguiçando o tempo que não tenho.

- Pai, eu nunca vi unicórnios, podemos ir ver?

O pai atrapalhado respondeu: agora vamos ver a exposição dos golfinhos, outro dia vamos ver se há uma de unicórnios. 

Chegue aqui senhor pai...Ou explica à criança que eles, como animais fantásticos, só existem na nossa imaginação como as fadas e os duendes ou então diz à criança que contacte o actual presidente da Autarquia Lisboeta pois é um dos maiores especialistas no assunto, embora ela possa vir a ficar desiludida quando perceber que afinal é qualquer coisa que rima com biliões e não com seres mágicos e alados. Eu, se fosse a si, não estragava tão cedo o mundo infantil.

~CC~

sábado, 18 de maio de 2024

Lugar de memória

 

Era para ser mais uma pousada, mas venceu o lugar de memória. Se não os tivermos, tudo será ainda mais difícil. 

Tenho sentimentos ambivalentes face às visitas guiadas. Se não tiver ninguém, tenho a sensação de que vagueio sem aprofundar, se tenho um guia, falta-me o deambular, o gastar tempo onde o meu interesse recai. Foi também assim no sábado passado no forte de Peniche, hoje museu da Resistência e Liberdade. 




Há coisas que nós precisamos de ouvir deixando que eles entrem no nosso coração por um lado que só nós sabemos, o passado quando fala connosco tem que ser em diálogo íntimo. E o nosso agradecimento surge quando somos tocados pela dor do outro, esse caminho em que alguns deixaram a própria vida.




Uma cela a fechar-se é para mim um dos piores ruídos que este mundo pode comportar. 

Eu nem fecho portas.

~CC~


quinta-feira, 16 de maio de 2024

Não chegou Maio

 

O vento trouxe o pólen primaveril que se infiltrou na minha exaustão. 

O corpo obrigado pelo dever a levantar-se diariamente parece que irá ali desfazer-se num canto do caminho. Vi o meu rosto no espelho e não o reconheci de tão gasto e cansado.

Sobrou da alegria apenas o casaco de muitas cores e a echarpe rosa e essa pequena chama lenta que nunca me abandona e é por certo o que me ficou do genes maternos e da infância inocente.

Não foi ainda Maio, aquele que me traz os primeiros passeios de pés nus na orla do mar.

~CC~


sexta-feira, 10 de maio de 2024

Esperança

 


Tenho uma caixinha de esperança.

Não é bem, é quase. Nela deposito todos os brincos que ficaram solitários. Fico à espera que o par apareça algures, que volte para mim. Hoje aconteceu. E era um dos brincos de que mais gostava, quase não queria acreditar que estava outra vez a formar aquele par e que os poderia usar. Um par oferecido, o que em si é também raro. 

Para quem só soube o que era usar brincos aos 42 anos isto tem sabor, fui furar as orelhas com um grupo de adolescentes da família.

~CC~


terça-feira, 7 de maio de 2024

Nada se conserta sozinho

 

Volto às salas de aula dos meninos pequenos no âmbito deste meu ofício que se desmultiplica, o que mais aprecio nele, esta possibilidade de deambular por muitos mundos.

Ainda estou impressionada com o menino de ontem. Costuma ser intempestivo e fazer birras, zangado com a vida. Muito inteligente, astuto, sensível. Vinha de cara amuada logo ao início da manhã e assim esteve, bastante calado ao contrário do que costuma acontecer. A professora chamou-o perto de si e perguntou-lhe o que se passava. E ele chorou pois tinha feito chorar a mãe logo pela manhã, fê-la zangar-se por causa da roupa que queria vestir (um clássico). E pediu para telefonar para casa e pedir desculpa à mãe, caso contrário naquele dia não ia cumprir nenhuma tarefa bem. Só oito anos...e que lição para tantos adultos que não sabem usar a palavra, nem entristecer com a tristeza que nos outros provocam, andam sempre em frente, nunca voltam atrás para reparar nada, acham que tudo se conserta sozinho.

Que se conserve sensível, imune à masculinidade tóxica que parece estar outra vez na moda, é ver como ela grassa entre políticos e figuras públicas.

~CC~


domingo, 5 de maio de 2024

Cuidarei do teu lugar em mim

 

Mais tu

Visto-lhe os casacos que me ficam invariavelmente grandes, pois no fim da vida ela tinha diminuído em altura e em peso, mas não deitava a roupa fora, cuidava dela como ninguém, lavando à mão e separando cada coisa por cores.

É o primeiro dia da Mãe em que não lhe oiço a voz. Era ela quem me prendia a estas convenções, sabendo que delas eu não sou adepta, perdoava-me a falta de fascínio, mas pelo menos o telefonema tinha que existir. Ela gostava muito de rosas e de orquídeas, enquanto eu prefiro as flores do campo e as de jardim, as estrelícias, os girassóis, as flores sem nome ou cujo nome não sei. Sendo duas mulheres tão diferentes, não sei o que nos aproximou tanto nos últimos anos. Talvez tenha sido eu, tardiamente a reconhecer-lhe o esforço de uma vida e o desamparo em que ficou, talvez a sua solidão tenha tocado na minha própria solidão. Dei-lhe a protecção que ela não me deu, perdoando-lhe ausências, omissões e escolhas menos boas. E comecei-lhe a achar-lhe graça, uma coisa fundamental para nos ligarmos a alguém, não é apenas o laço de sangue que o faz.


Mais eu


Cuidarei do teu lugar em mim.

O casaco castanho fica-me tão mal, tu nem deixarias que o usasse, com o teu fino sentido estético. Mas olha, sou eu e sendo assim também me importa que me cubra toda e não tenha que levar o guarda-chuva neste dia em que ela cai amiúde. 

~CC~

sexta-feira, 3 de maio de 2024

Mais do que...


 

Umas pedras retiradas da terra. Uns paus apanhados pelo campo. A infinita paciência de um artesão. Tenho a certeza de que não lhe chamavam reciclagem, era apenas a lenta sabedoria de aproveitar o que  estava ali à mão. A peça era única e mesmo assim quase sem custo. Tanta coisa deixada para trás, resta saber o que ganhámos, o que aprendemos a fazer, o que construímos. Às vezes penso no que acontecerá quando a tecnologia estourar no centro de qualquer pandemia ou efeito semelhante. O que saberá cada um fazer com as suas mãos?! De salientar que isto não é apenas sobre o outro mas também sobre mim própria, como aliás quase tudo o que escrevemos. Luto para as minhas mãos saberem fazer muito mais coisas do que apenas disparar letras no teclado, luto para dar abraços reais, com cheiro e tudo.

~CC~