quarta-feira, 30 de abril de 2025

O ruído que interrompe o silêncio

 

Os fins de tarde no Recife ficaram registados em mim. A partir das 17h e considerando que às 18h é de noite, as crianças e jovens começavam a afluir. Traziam bolas e enchiam os vários parques desportivos ao longo da enseada da praia. Às 18h, já com as luzes ligadas, continuavam a jogar. Era um ruído maravilhoso de gargalhadas e gritos. Praticamente não havia adultos, eles tinham vindo por ruas e ruelas até ali e gozavam aquele momento antes do jantar com uma alegria imensa. Era uma liberdade contrastante com aquelas que nós europeus em visita não tínhamos, mostrava o quanto eles eram daquele lugar.

Essas crianças e jovens apareceram aqui na rua e parece que por Portugal inteiro durante o apagão. De repente tinham na mão bolas em vez de telemóveis. E sabiam brincar. Eu que gosto de silêncio e estive sempre sozinha em casa agradeci-lhes tanto esse ruído vivo e intenso que vinha da rua, subia ao terceiro andar e parava no meu coração.

~CC~~


sábado, 26 de abril de 2025

Uma e outra vez e sempre a Festa


Uma e outra vez o cansaço agarra as pernas a casa. Uma e outra vez elas movem-se, vencendo-o. Uma e outra vez penso que já vi todos os cartazes, todas as pessoas, todas as manifestações. Uma e outra vez o olhar maravilha-se e capta novas e diferentes imagens, o coração volta a voar e a querer cantar, volta a ser como os pássaros. 

~CC~

domingo, 20 de abril de 2025

É esse grão de loucura a cola que nos une

 

Paçoquinha e amores perfeitos são os meus doces desta Páscoa. Recém chegada não havia onde comprar folar e muito menos o cansaço acumulado me motiva à cozinha. E se estivesse lá sabem o que comeria? Bacalhau da Páscoa, é o o que se come na maior parte do Brasil nesta época (pelo menos em Pernambuco, o Brasil é tão imenso que talvez haja diferenças). 

Podemos ser iguais e ainda assim muito diferentes? Foi o que senti esta semana. Tal como acontece com os irmãos em que o sangue partilhado e o sangue singular tornam cada um único. E rejeitar as semelhanças é tão inadequado quanto o contrário. 

Voltando ao que une, uma boa dose de loucura alimenta por certo dois povos que escolhem para prato típico dos seus momentos religiosos e festivos um peixe que não existe junto das suas costas.

~CC~

sábado, 19 de abril de 2025

Conviver com os tubarões

 

De manhã a água turva, o vento e as pequenas ondas traziam a todas as conversas os tubarões fugidos do seu berçário natural, espraiando-se agora à espreita dos mais afoitos ao longo de toda a costa de mais de seis quilómetros da praia da Boa Viagem. Não são uma ilusão, avistei a barbatana de um e no grupo houve quem os filmasse por mais de uma vez, a não ser que sugestionados pelo receio, as nossas pupilas gerem estes fantasmas.

Contudo, os avisos de cuidado com o turbarão estão lá e são parte integrante da paisagem, embora pareçam de filme de Hollywood, quase a par das histórias que se contam pelas esplanadas, invariavelmente de um ou uma turista europeia, bem lourinha, tornada almoço do animal marinho. Já para os vendedores das mais de mil coisas que se encontram pela praia, não passam de uma invenção, ao estilo das bruxas, e foram boatos para levar todos os turistas do Recife para Fortaleza.

Pela tarde, o mar fica mais claro, sem modo de se disfarçar os tubarões ficam para lá da barreira das rochas e as crianças podem largar as piscinas de plástico que são afincadamente enchidas pelos mil e um trabalhadores da praia, a troco de uns poucos reais. 

A minha condição de nadadora pouco audaz colocou-me em paz com os tubarões e pude deitar-me na água cálida como se fosse ainda uma criança deslumbrada pela possibilidade de ficar no mar infinitamente, sem o mínimo perigo dos lábios roxos. Ainda assim, sendo veraneante intermitente, não pude usufruir nem desfrutar em pleno, era pouco o tempo para beber o sol. Reforcei, contudo, a minha convicção de que a felicidade combina mesmo com certos momentos da nossa existência..

~CC~

sexta-feira, 11 de abril de 2025

Vanessa Cardui

 

Há borboletas que atravessam um oceano, o mesmo atlântico que eu pretendo cruzar. Ao contrário de outras espécies que fazem curtas travessias parando para descansar, esta aventurou-se mais, muito mais, chamam-lhes bela dama e dizem-nas mundanas. Deve ser o seu desejo de ver mundos outros que as leva a superar-se. Oxalá que eu também consiga ultrapassar as minhas fragilidades, esta foi uma semana atravessada por constipações, calor febril, momentos de insónia e alguma insatisfação. Às vezes é preciso ir respirar do outro lado do oceano, ou do outro lado de nós próprios. 

~CC~

domingo, 6 de abril de 2025

É singular

 

Ontem fui ler uns textos no aniversário de uma biblioteca que muito frequento. Eu e mais umas quantas pessoas, elas por serem habituais nas oficinas de escrita criativa que a instituição dinamiza. A mim falta-me o tempo para me inscrever e a crença de que tal fará de mim uma escritora melhor. Contudo, acredito que seja algo de positivo, pelo menos assim o partilharam. Cada um leu textos seus e de outras pessoas e ainda lemos todos juntos uma pequena quadra. 

O público não era muito e por isso não pude deixar de notar no homem de telemóvel na mão a filmar. É coisa que me chateia muito alguém filmar sem pedir consentimento. Contudo, percebi que não tinha com o que me preocupar. Ele filmava apenas uma pessoa quando ela lia. Era uma mulher grande, de cabelos todos brancos, sorriso largo, nem bonita nem feia, mas de alguma forma parecia estar em paz, transmitia isso. Num determinado momento, ela leu uma pequena poesia intitulada Narciso que evocava sol e que acabava em amo-te. Disse-a a olhar para o homem que filmava e que se emocionou. Ficou então claro. Depois alguém comentou que eram marido e mulher desde sempre, ele aparentemente um pouco mais novo, por isso não efectuei logo aquela ligação. 

Como é belo um amor que perdura assim. Mas não queiram saber o segredo, não há. Cada amor destes é absolutamente singular.

~CC~


quinta-feira, 3 de abril de 2025

Para derrotar o medo

 


O medo está a subir na escala. Talvez medo nem seja a palavra. É mais desconforto. Não gosto de aeroportos nem de aviões. As barreiras, os apitos, a polícia, os documentos, é tudo insuportável. Como é que alguém que detesta uma coisa a faz?! É o destino do outro lado a chamar. Haverá uma balança em que o desconforto pesará tanto que ficarei à beira de desistir, aguentarei por um triz. Depois talvez chegue e se assim for e acordar na manhã seguinte numa rua e num lugar que não conheço, farei como as mães que deslumbradas pelas crias esquecem toda a dor. Mais, apenas longe de casa consigo realmente descansar. E a cada dia noutro destino é como se tudo se relativizasse para me proporcionar o esquecimento necessário para respirar mais e mais e outra vez. Além disso, derrotar o medo é viver, escrevo aqui também para o derrotar.

~CC~