sábado, 21 de dezembro de 2019

E por fim, dou-vos...poesia!



Ela virou-se para mim, olhando-me frontalmente e disse-me: eu não gosto de poesia, não gosto mesmo. Fiquei um momento sem resposta, quase gelada. Vinte anos, ela não tinha mais que 20 anos. Soube logo que era então ela que escrevia na avaliação da disciplina: secante, este ano o tema é secante. Respirei fundo e disse-lhe quase com ternura: pode ser que um dia sintas o clique, se nunca o vieres a sentir, terás perdido uma das coisas mais belas da vida. E fiquei em paz.

Não foi há muito tempo que ouvi esta prosa-poesia, não é dos poetas que melhor conheço, mas acho-a brilhante e uma metáfora do que pode ser a vida. Se gostar, leve-a.


TEORIA DAS CORES


Era uma vez um pintor que tinha um aquário com um peixe vermelho. Vivia o peixe tranquilamente acompanhado pela sua cor vermelha até que principiou a tornar-se negro a partir de dentro, um nó preto atrás da cor encarnada. O nó desenvolvia-se alastrando e tomando conta de todo o peixe. Por fora do aquário o pintor assistia surpreendido ao aparecimento do novo peixe.

O problema do artista era que, obrigado a interromper o quadro onde estava a chegar o vermelho do peixe, não sabia que fazer da cor preta que ele agora lhe ensinava. Os elementos do problema constituíam-se na observação dos factos e punham-se por esta ordem: peixe, vermelho, pintor — sendo o vermelho o nexo entre o peixe e o quadro através do pintor. O preto formava a insídia do real e abria um abismo na primitiva fidelidade do pintor.

Ao meditar sobre as razões da mudança exactamente quando assentava na sua fidelidade, o pintor supôs que o peixe, efectuando um número de mágica, mostrava que existia apenas uma lei abrangendo tanto o mundo das coisas como o da imaginação. Era a lei da metamorfose.

Compreendida esta espécie de fidelidade, o artista pintou um peixe amarelo.

Conto da colectânea “Os passos em volta”, de Herberto Helder


Boas festas!
~CC~

sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

Dou-vos - um ingrediente para os cozinhados.



Agora sei que o Natal da minha infância era uma estranha mistura. Era híbrido, ou se calhar, mulato. Nessa altura não podia imaginar como seriam os outros natais, não pensava no mundo muito para além do meu quintal, embora soubesse que havia parentes lá longe, nunca percebi porque se chamava a Portugal continental "o puto", talvez pelo seu tamanho. Não havia laços, não havia afectos, praticamente toda a família do meu pai se tinha mudado para África e apenas a da minha mãe tinha ficado, ela pouco ou nada falava deles. 

O Natal era uma imensa festa, feita no quintal, com as árvores enfeitadas por luzes de todas as cores, frango assado com piri-piri e muita cerveja. No meio de tudo isto, aparecia um pai natal vestido a preceito, a sufocar com o fato vermelho completo e as barbas feitas de algodão. Pobrezinho, Dezembro, é mês de muito calor. 

Não posso dizer-vos que bebi com o leite materno o sabor do picante, pois a minha mãe não o tinha. Mas lembro-me de gostar desde sempre, mesmo quando me fazia chorar um bocadinho. Sou fascinada pelos vários sabores de picante que os frutos dão e há tantos, mas tantos. Imagino muitos de vós não gostem, por isso deixo-vos estes, têm um picante moderado e doce. E são belos, não são? E as cores combinam tão bem com a época. Bem sei que não conjugam com o bacalhau, mas arrisquem um bocadinho com a carne, vão ver que lhe dá outro toque e se se emocionarem e deitarem uma lágrima, sempre lhe podem atribuir a responsabilidade.


~CC~

quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

Dou-vos - o grande abraço do teatro comunitário.


Num dia como o de hoje só apetece aconchego, um abraço, saber que os nossos estão bem. E todos os outros também. 

Aproveito para vos deixar então uma das minhas paixões - o teatro. E porquê o teatro, qual a relação? 

Com muito respeito pelos actores profissionais, amo ainda mais o teatro feito pelas pessoas que não são artistas mas conseguiram, por muito, ou por pouco tempo, arranjar um espaço na sua vida para se juntarem com outros e criarem algo em conjunto. É o teatro comunitário - na maior parte das vezes um grande abraço entre gente que não se conhece. Levem o abraço. Ou a ideia de um dia fazerem algo que não faz parte da vossa profissão, é um outro tempo, outro espaço, outro modo de se conhecerem a vocês próprios, de se desafiarem. Eu estou por aí, nessa fotografia, muito escondidinha, é certo.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Dou-vos Alentejo - em sintonia com a quadra



Já vos disse que sei que o meu lugar é no Alentejo? Um sítio onde não nasci, não vivo nem nunca vivi. Às vezes vou um bocadinho lá para me misturar com as estrelas do céu, os horizontes sem fim, o silêncio do branco das paredes, o falar arrastado das pessoas, o doce embalar do cante. Entre as coisas que mais gosto estão os presépios de Estremoz, os únicos que seria capaz de colocar em casa. Amo aquele imaginário em que os homens, os animais e as plantas aparecem em harmonia como se fosse o princípio do mundo. 




terça-feira, 17 de dezembro de 2019

Dou-vos fotografia(s) - um povo da neve



Quantos povos do mundo conhecemos? Quantos vivem no seu silêncio sem que o mundo deles saiba alguma coisa? Sebastião Salgado foi à procura deles, construindo uma obra singular. Quando quiserem mostrar aos vossos meninos quem conduz as renas na neve, mostrem-lhes esta imagem. Será outro Natal.

~CC~

Povo Netnet conduzindo renas no Ártico Siberiano
Foto de Sebastião Salgado

segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Dou-vos Deuses


Ofereço prendas durante toda esta semana. Virtuais, é certo. Mas são minhas, ou seja, vossas. Certo é que são das coisas que eu mais amo.

Quem gostar, só tem que, se quiser, dizer que a levou.




Estes são (dois) dos meus deuses.

~CC~


sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

Primeira versão



Muita(s) ausência(s) ou uma presença a meio gás, em todos os lugares em que costumo estar inteira.

Um mês sem ir ao cinema.

Alguma irritabilidade.

Uma tendinite a instalar-se.

A cozinha com pouco ou nenhum cheiro a ervas e especiarias.

Três tabletes de chocolate negro com sal.

Uma primeira versão do documento feita. E ainda dizem que custa muito fazer teses de doutoramento. Custar, custa, mas custam muito mais os documentos que de criativo pouco têm.

~CC~


quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

Dezembro



O cansaço produz tanto vazio. E uma certa insensibilidade ou rudeza ou tristeza. Lembro-me de no ano passado ter passado entre as barraquinhas de madeira da feira de Natal e achar aquilo bonito, enquanto agora me pareceram acanhadas, despidas de encanto, mera imitação de qualquer outra coisa num outro país que não o nosso. A árvore de Natal é igualmente feia, durante o dia uma pirâmide de metal enorme, a atrapalhar o passeio e a ultrapassar a copa das verdadeiras árvores, essas sim, bonitas. E uma pergunta terrível a congelar alma: para quê todo este lixo? E logo outra: será que isto vai passar-me? Será que um dia me encanto outra vez? 

Só me apetece o silêncio do campo, essa noite grande de estrelas, essa manhã de acordar lento, esse chá que pode beber-se ao pé da lareira.

Ou o mar de Inverno, essa praia despida onde se pode conversar com as gaivotas.

~CC~

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

A pergunta da tarde



Deus deve encontrar-me ou eu é que devo ir à procura dele?



Dois homens entre os 60 e os 70 discutiram animadamente esta questão durante duas horas. É o que dá estar impossibilitada de estar em casa e frequentar cafés de intelectuais. No dia anterior, num outro contexto, uma família discutiu durante o mesmo tempo a posse de bens, o modo como uns e outros usavam o dinheiro, com críticas constantes à mulher de alguém, provavelmente a intrusa no suposto sangue que os une. Valha-me Deus, onde quer que esteja e seja quem for.

~CC~

sábado, 7 de dezembro de 2019

Inscrição


Acordei a pensar em ti e apeteceu-me abraçar-te.
Para que saibas, para que conste.

~CC~

quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

Adiamento



E o jeito que me dava passar o Natal para o próximo mês?
Não se pode?

~CC~

quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

Perplexo, pois então?



Estava demasiado perto de mim, impossível não o ouvir.

- Estive 17 anos casado com ela e posso garantir-lhe que não a conheci.

O defeito parece-me inequivocamente dele, certo? Ele estava perplexo, eu mais perplexa fiquei por lhe ser necessário tanto tempo com um resultado tão parco. Apeteceu-me questioná-lo pelo tempo que tinha levado para se conhecer a si mesmo ou, se como dizem os angolanos, ainda estava em processo.

~CC~

terça-feira, 3 de dezembro de 2019

É isso mesmo



Palavras que sendo de outro poderiam ser as minhas. As do dia 3, mas sobretudo as do dia 1.

Como já não preciso de as escrever, sublinho-as, tomo o seu tom e o seu sabor.

É tão bom quando sentimos que não estamos sozinhos no mundo.

~CC~

segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

Pronúncia(s)



Ainda sou menina daquele tempo em que na escola nos retiravam todo o vestígio de qualquer pronúncia, pois alguém escolarizado tinha que falar uma língua asséptica, um português de classe média entre o eixo Lisboa-Coimbra. Tão ou mais do que a pronúncia, o conjunto de regionalismos era igualmente mal visto. Passando numa vertigem de Luanda para Olhão, eu aliás, mal reconhecia a mesma língua, sentindo por muito tempo que não sabia falar coisa alguma. A língua da escola até foi a minha salvação. Passaram por isso muitos anos até que começasse a apreciar os sotaques, as diferenças regionais, as particularidades que a nossa língua assume.

Por isso este concerto foi um festim - um genial encontro entre os rapazes do Norte e as moçoilas do sul. Claro que há partes que não percebemos mesmo, mas é nisso que reside o desafio. Actualmente, quando os estudantes se envergonham das suas pronúncias, eu digo-lhes para se orgulharem, pois não são todos que têm a identidade na ponta da língua. Alguns, como eu, são híbridos e não sabem bem a que lugar pertencem. Contudo, assim que piso a minha terra natal, há qualquer coisa naquele modo de falar angolano que me sabe quente e próxima. Não sei se é isso que de quando em quando me faz voltar, mesmo sabendo que não devia.

~CC~