A memória dos Natais é também a das agregações e desagregações familiares, gosto deles porque contam histórias e, se são histórias, nelas se incluem os buracos negros e os rasgões de luz. Os Natais estão longe de ser ou de terem sido lugares felizes mas são sempre e invariavelmente uma resistência à tristeza, a todas as tristezas que cada um de nós traz para essa mesa de Natal, às vezes até o luto por um país vem espreitar entre os doces e é em catarse colectiva que escorraçamos o pior. Outras vezes alguém perdeu outro alguém, houve uma separação ou há uma das crianças que não pode estar presente porque o pai invocou os seus direitos, alguém ficou doente, está em risco de perder o emprego ou simplesmente está desconfortável na sua pele. Nessas alturas não há nem silêncio nem barulho excessivo em torno da questão, ela vem à mesa com a naturalidade das outras conversas. No Natal passado dois de nós estavam separados de pessoas que ainda amavam mas com quem não conseguiam viver na paz necessária para assegurar a identidade própria. Somos assim, abdicamos mais do outro do que de quem somos. Todos sabiam que sofríamos mas não nos enchiam de mimos lamechas. Este ano há mais alguém que vai emigrar porque perdeu o emprego, sairá logo a seguir ao Natal e é pai de um filho pequeno, meu sobrinho. Ao mesmo tempo as duas separações resolveram-se e as pessoas estão juntas outra vez e sei que não apenas esses casais mas todo o resto da família se congratula por isso.
A sobrevivência da minha família poderia assim contar-se pela sucessão de Natais e acho que é por isso que nunca perdi nenhum, nunca em momento algum, em dia nenhum, deixei de estar com a minha mãe e com as minhas irmãs, é feito de mulheres o núcleo duro desta família, embora os homens sejam um elo muito bom também. É como se quisesse registar o modo como perdemos e ganhámos maridos, filhos, enteados e cunhados, creio que se marcasse no calendário os anos, poderia dizer quem éramos, onde estávamos, com quem estávamos. A minha filha é igual a mim, podem as outras primas passar meio dia ou meia noite com os respectivos pais, outras partes da família, já ela não, aqui é o lugar dela. E sabe que pode trazer quem quiser.
Até agora nós, este núcleo duro de quatro mulheres, agregamos quem vier mas não nos desfazemos, creio que isso é fruto dos tempos complicados que passámos porque o passado não é apenas o tempo já ido, é qualquer coisa que entra no sangue e fica na pele, já não o estamos a viver e os seus ecos ainda permanecem. Desde há uns anos atrás comecei a guardar e a repetir as receitas da minha mãe pois ela já não as consegue fazer, claro que sempre com receio de falhar. Mas como nesta família a tradição é feita de reinvenções, introduzi outras coisas que ela não fazia e que nem sequer são tipicamente portuguesas nem natalícias. Prezo essa liberdade de podermos mudar tanto quanto o gosto de herdar o que vem de trás.
Desejo a quem passa por esta rua um Natal à medida do que o faz feliz.
~CC~