quarta-feira, 26 de outubro de 2016

O caçador que se rendeu ao rouxinol



O homem vivia encarcerado no perímetro urbano da cidade, metade do dia passado no balcão do banco, desfiando papelada que o enfastiava. O seu coração estava além, na serra. Bastava levantar os olhos, correr até à janela e via o seu recorte com clareza. Que pretexto pode arranjar um homem para se sentir carne e terra? A caça.

Então ele tornou-se caçador. Depressa surgiu o grupo e com eles a tasca, os casebres onde dormiam, as madrugadas frescas na serra. Depois já não era a presa nem a perseguição que o moviam mas as noites estreladas, o silêncio, o mover dos animais no restolho. Procurou ansiosamente uma casinha onde ficar aos fins de semana. Depois ampliou-a e os fins de semana já não faziam sentido, precisava de ficar a semana inteira.

Quando o rouxinol começou a cantar na sua janela pelo começo da noite, já nem sequer era um caçador, apenas um apaixonado pela serra. Um rouxinol trouxe outro, pelo início da Primavera e até ao final do Verão, podia ouvi-los todas as noites, como um concerto que a natureza trouxera só para si. Um dia, porém, o homem trouxe os amigos da cidade e eles trouxeram com eles as violas. Foi uma festa noite dentro, bebida, cantoria, barulho. Os rouxinóis não gostaram, abandonaram-lhe a janela. Cresceu no homem uma tristeza pequenina, todas as noites perguntava à mulher: será que não voltam mais? E ela respondia: um dia virão, vais ver.

E no ano seguinte, ali por volta de Maio, foi ela mesmo a primeira a ouvi-lo e correu a chamar o homem. A lágrima furtiva dele ficou entre os dois no longo abraço que deram. O homem que ela apertava entre os braços não era certamente o mesmo que conhecera, mas este, ainda o amava mais.


~CC~


PS. Há muito que recolho histórias dos lugares por onde passo, tomo às vezes notas, mas raramente tenho (tinha) tempo para as escrever. Esta é uma homenagem (como dizem nos filmes, baseada numa história verídica) aos dias que passei este Verão na serra de Montemuro.




2 comentários:

  1. Olá CC, acabei de entrar aqui e de ler vários posts de seguida.
    Fiquei, também eu, com uma vontade na garganta de lhe dar um abraço apertado.

    Até amanhã, ao nascer do sol.

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  2. Já nasceu Susana, às 6h45m já clareava!
    Abraço apertadinho.
    ~CC~

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