segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Nadine (II)

 

Tinha aquele nome que se estranhava mas era só uma miúda de aldeia. É bem verdade que tinha nascido em França mas tinha sido ali, entre pedras e vento, que crescera. Era a última filha, já tardia e numa fase em que os pais já tinham decido regressar, amealhado que estava o bastante para garantir a velhice no lugar em que se falava a sua língua.

E o nome combinava com aquele ar trigueiro, olhos esverdeados, cabelo alourado, tez branca. Tinha qualquer coisa de anjo, até por não ser especialmente faladora e distrair-se com facilidade. Sempre na lua, como dizia a mãe. Fez a escola na aldeia, depois o Ensino Básico na vila e para frequentar o Ensino Secundário foi para a sede do concelho. Tinha facilidade em aprender mas nenhum gosto especial por nada e desviava o assunto quando lhe falavam em futuro e em profissões. Costumava dizer que queria continuar a aprender, a aprender para sempre. Também não tinha interesse por rapazes, nem por namorar, recusara todas as aproximações e convites. 

Até que lhe apareceu outro anjo. Era tão parecido com ela que podiam ser irmãos. Conheceu-o na turma do Ensino Secundário. Eram os únicos a participar de forma interessada e constante nas aulas de Filosofia. Depressa se tornaram amigos e quase inseparáveis, protegendo-se um ao outro constantemente. Nas férias de Natal, cada um retornou a casa. Ela sofreu horrores com aquela separação forçada. Mas a felicidade chegou em forma de postal, um poema e no final a frase: já com saudades tuas.

Se ela era um anjo, agora vivia literalmente nas nuvens. Contudo, nada acontecia, ela não era capaz de dizer que o amava, não se tocavam. Até que chegou aquele dia de Maio, aquela noite quente e estrelada. À tarde ele tinha-a convidado para darem uma volta ao parque depois do jantar. Ela tinha a certeza que a hora tinha chegado, era difícil conter a tremura que sentia nas pernas.

Ele foi dizendo que tinha algo difícil para lhe dizer. E ela que ele lhe podia dizer tudo, tudo o que quisesse. Então, chegou de facto uma declaração de amor, mas não lhe era dirigida. Era sim destinada a um colega de turma, rapaz em tudo diferente deles, doido por futebol e sem pontinha de filosofia. Não era apenas ele gostar de rapazes que a chocava, era também ser aquele tipo de rapaz. 

Ela envelheceu de repente, tirou as asas, e sem elas teve muita dificuldade em voltar a voar.

~CC~



8 comentários:

  1. Não acho que futebol e filosofia se choquem necessariamente CC, que o digam Eduardo Galeano ou mesmo o Jorge Valdano, mas percebi a sua intenção. A vida está cheia de desencontros e de más interpretações, acho mesmo que fazem parte dela, o que se já não me choca, pelo menos entristece-me.

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    1. Ah, pois não...mas neste contexto era assim, de um lado os da aula de filosofia, do outro os da aula de educação física, o mundo era cheio de fronteiras...ainda assim, o amor queria galgá-las.

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  2. Que amor pesado para início de vida amorosa. Mas como é de faz de conta, fica mais leve.

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    1. Não há "faz de conta" nestas histórias Bea, leves ou pesadas são a vida, tal como ela se apresenta.

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    2. Ou, como a CC a vê (à vida). Existem casos destes? Sem dúvida. E com nuances diversas: terríficas, suavizantes, propulsoras, etc. Mas o tom é seu, pertence-lhe. Para o bem, para o mal, e "par delá". A forma de contar e o por que se conta é o muito de qualquer história. Parece-me.
      Tenha um dia Bom, CC.

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    3. Sim, sou eu a contar o que me disse a Nadine que viveu e sentiu.

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  3. engraçado, faz-me lembrar um pouco uma vida passada :)

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    1. Fiquei ultra curiosa mas contenho-me:)
      Obrigada por vir.

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