sábado, 3 de fevereiro de 2024

Notas de viagem (III)

 

A vida nos lugares em que há outras pronúncias e se comem outras coisas, ditas típicas. A diferença aqui a norte é que estas coisas não são assim tanto para turista ver e levar,  as pessoas daqui consomem-nas mesmo como suas, parte do seu sangue e, quem sabe, ingrediente do seu próprio sotaque. Antes tinha receio de ser do Sul, achava que nos detestavam aqui. Mas agora os ódios são todos conduzidos para mais além.

Os empregados do comércio, nas superfícies maiores e mais centrais, são invariavelmente brasileiros como lá no Sul, parecem absorver o sotaque e os costumes e sabem dizer-me o que são todos os salgados e todos os doces com a mesma mestria de quem aqui nasceu. Mas ali nos pequenos comércios, de natureza familiar, em que o filho e a filha ainda saem da escola e vão ajudar os pais, os clientes fazem o mesmo discurso adverso que lá no Sul, esse discurso que cresce como bola de neve e nos parece submergir numa onda sem precedentes de ódio aos emigrantes (excepção aos brancos e ricos). Há que desconstruir com calma e alguma compreensão, pois se colocarmos na nossa voz tanta raiva como eles colocam, não chegaremos lá. 

Aqui no congresso eram também três vezes mais brasileiros do que portugueses e participei numa mesa em que era a única portuguesa, sendo este evento passado em Portugal, é verdade que se estranha e exige de nós esforço para que nos entendam. E estranha-se de várias maneiras, desde logo pela festa que em tudo é colocada, pelas muitas fotos, abraços e modo pouco académico de comunicar. Mas depois há que que colocar a cabeça a funcionar, estaríamos mais sem eles? Seria melhor? O que se ganharia? Talvez seja só diferente, talvez os lugares sejam hoje diferentes. Provavelmente lá no Mato Grande do Sul, a nossa foto conjunta estará a ser mostrada à família e haverá um dedo sobre o meu rosto a apontar-me como a única portuguesa. Já a mim, não me ocorreu sequer pedir-lhes a foto ou o contacto, preservar o que é diferente é-me ainda assim essencial.

~CC~



6 comentários:

  1. Suponho que já expressei aqui a minha opinião acerca do novo Portugal. E não por me julgar mais ou melhor que cada um deles. A grande maioria dos portugueses não tem conhecimento dessa elite estrangeira senão por acaso, nunca cruzam o nosso caminho; habitamos mundos diferentes. Toda a medalha tem reverso, mas o reverso não é a mistura de nacionalidades em que nos tornámos. Essa é a parte boa. Ou a melhor.
    Quanto a ser a única portuguesa, digo que ficámos bem representados.

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  2. Sim, está difícil que compreendam a justeza de que todos têm direito a uma vida melhor num mundo que, por agora, e só um. É nós que fomos para todo o mundo como não compreendemos que venham para o nosso mundo?
    Um abraço.

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    1. Nós éramos europeus e brancos, a nossa integração foi certamente diferente e ainda assim bastante difícil. As coisas estão complicadas, curiosamente eu já conhecia a faceta sul e o que se está a passar aqui (sobretudo no Alentejo Rural e é ver o que aí está a colher o voto da extrema direita) mas não imaginava ver tantos emigrantes brasileiros e do sudoeste asiático no Minho. Ainda assim, um pobre a pedir à porta de cada Igreja e não era emigrante. Um abraço

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  3. Os que vêm de fora porque procuram vida melhor nem sempre são considerados.
    A diferença, seja no sotaque, no aspecto exterior ou na forma de comunicar afecta-nos muito mais do que pensamos.
    Um abraço
    Olinda

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    1. Afecta-nos sim Olinda e de várias maneiras. Um abraço

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