sexta-feira, 17 de outubro de 2025

No calorzinho do sofá vê-se o ecrã (I)

 

Nunca fui uma fã de televisão, talvez por ter passado a minha infância sem ela, a adolescência também não me agarrou, tão ocupada que estava a explorar um mundo que pouco a pouco ia conseguindo alargar. Tão grande que era...

Passei incólume pela febre das séries e pelas plataformas pagas a que quase todos aderiram, nunca tive nenhuma. Quando a minha filha era adolescente víamos os episódios de Anatomia de Grey na data e hora a que passavam no canal, portanto apenas um. Recordo mais os nossos pés encaixadinhos do que qualquer episódio. Achei graça sem me deslumbrar à Casa de Papel e não fiquei ansiosamente à espera da nova temporada, nem senti necessidade de ficar madrugada fora a ver como acabava o conto de fadas moderno, uma espécie de Robim dos Bosques reinventado. A melhor série que vi até me deixar encantar foi sem dúvida The Handmaid's Tale, essa distopia sombria que parecia tão irreal quanto agora parece um assombro do que podemos vir a ter, era arrepiante e magnífica, ainda assim, talvez pela carga cinzenta, não conseguia ver mais do que dois episódios. 

Mas não digas nunca. Pois é. Vi os quatro episódios últimos dos oito de Normal People de uma vez. Gostava, contudo, que não caíssem na tentação de fazer com que aqueles jovens cresçam. Quero guardá-los assim nessa sua normalidade anormal, próxima do que todos somos. Foi esse o encantamento, é que sou eu e não sou, és tu e não és, são eles e não são, há um bocado de todos nós ali. É brilhante como cada um é desadequado à vez em função do contexto em que se situa, como cada um à vez se sente inferior ao outro e por motivos bem diferentes, como cada um magoa e se deixa magoar. E a representação é tão boa que não acredito que sejam actores, são dois miúdos que foram por certo buscar à vida real. Já passou quase um mês que vi e ainda não esqueci, apesar da vertigem da vida que vivo.

Ora aí está, por vezes há calorzinho no sofá e brilho na televisão. Ou então estou a envelhecer.

~CC~


5 comentários:

  1. Bem... que está a envelhecer não há dúvida, estamos todos, não é CC, e a marcha é inexorável e irreversível, excepto para Benjamin Button. Também acompanhei como pude a série The Handmaid's Tale e gostei imenso, mas recordo que a via a medo...

    O quarto que ele arrendou àquele jovem casal era como então se dizia, uma parte de casa. Havia-as muito em Lisboa naquele tempo, com serventia de cozinha ou sem serventia. O jovem casal fez-lhe lembrar, há muitos anos, quando ele também era um recém casado, e depois até se ter divorciado.
    E também se lembrou, noutros lugares, como o tempo parava quando os seus lábios tocavam nos da mulher, em escadas, praças, becos, até chegarem a casa, no arrepio que sentia quando a pele começava a tocar-se no aproximar dos seus limites.
    Mas este casal era diferente.
    Ela comia em silêncio. Após os primeiros meses de casamento, era quase sempre assim, pois os dois haviam esgotado tudo quanto podiam revelar um ao outro. De tanto ouvi-los repetir, ela sabia de cor episódios da vida dele e ele da vida dela: nos últimos tempos, raramente dispunham de caso novo para entretenimento. Ele mesmo já se habituara apenas aos comentários sobre a vida doméstica ou à vida de vizinhos conhecidos e ela a alguma anedota contada pelos colegas do escritório.
    Foi quando ligaram a televisão.
    Um abraço CC

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    1. Ah Joaquim, ligar a TV pode ser isso ou o seu contrário, sinal de gelo e distância ou de cumplicidade. A mesma coisa com o silêncio, já vivi silêncios bons e silêncios horríveis. Contudo, sempre lutei por refeições sem televisão por as encarar como ocasião importante de diálogo, nem sempre tive esse sucesso com as pessoas com as quais partilhei vida, felizmente com a minha filha sim.

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  2. "Anatomia de Grey" vi alguns episódios e depois perdeu interesse (eu o perdi). "Casa de papel" vi o primeiro episódio pareceu-me bem mas havia muito suspense. "Handmaid's Tale", não gostei e vi apenas um episódio. "Normal people" são doze episódios e vi todos; tem a qualidade BBC, pareceu-me um bocadinho doentia quanto a sentimentos e prefiro os primeiros aos últimos episódios. Mas os actores e a realização são notáveis. Duvido que a dita "normalidade" seja tão anormal. Seremos assim tão bizarros?!
    Vejo pouquíssima TV no dito aparelho. Espreito a rtp play, mas é raro agradar-me. Vejo alguns filmes de interesse relativo no you tube. A Netflix visito-a, mas pouco me aproveita, os melhores filmes já os vi no cinema ou no portátil. Agora há um com Cillian Murphy que é dramático qb, mas inda o não vira e gostei.

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  3. Acho-os bizarros? Não achei, acho que a série pretende quebrar essas fronteiras entre a sanidade e a loucura, a normalidade e a anormalidade, somos tudo isso. Achei linda, real, humana. Para filmes prefiro realmente o cinema, ainda que já tenha visto um ou outro em casa e bons. Bom domingo,deixei uma música que combina com a sua viagem.

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  4. Entendi a finalidade da série, mas espero, sinceramente, que não sejamos todos de tal complexidade. Sucedeu-me o mesmo que nos livros de Agatha Christie: continuo a esperar que na pacatez de um lugar, ou na balbúrdia de uma cidade, não existam tantas pessoas (normais) tão cheias de maldade. Acredito que elas sejam a excepção e não a regra, enquanto a escritora, sobretudo na personagem Miss Marple, descreve, no total, uma aldeia cheia de potenciais e efectivos criminosos. Em relação à série penso mais ou menos o mesmo, a normalidade - aqui no sentido de a maioria das pessoas - não é tão pontiaguda. Que somos um mistério para os outros e até para nós mesmos, é ponto assente.
    Mas talvez eu acredite demasiado na humanidade e seja uma defensora da aprendizagem social; contudo, penso que o inato não desaparece. A aprendizagem amortece, lima, canaliza; não mata. É o risco de viver.
    Sim:), já fui ouvir a musiquinha de domingo. Merci.
    Boa semana, CC

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