Não sei se se aprende na escola, acho que não. Também não sei como certos passos nos levam a lugares mais certos do que outros. Sei que desde o primeiro dia que eles disseram: nós aqui somos uma família. Uma família de dentistas, todos fazem lá alguma coisa e até a mãe mais velha passa ali os dias, não a deixam em casa. O dentista pai vai todos os dias almoçar com ela. As filhas gémeas saem aos pulinhos felizes à hora do almoço. As empregadas, as únicas que não são da família, também parecem fazer parte dela. Fico a pensar porque parei ali um dia. Depois recordo melhor, foi em conversa com uma aluna minha que chegou a trabalhar lá, agradeci conversar com as alunas para além dos trabalhos, poder lhes perguntar qualquer coisa de pessoal e elas a mim. A minha filha diz que lá na universidade não sabem o que é isso. Os anfiteatros estão cheios, os professores não sabem os nomes deles, eu já sei os nomes de todos os meus alunos do 1º ano e claro, sei também os nomes dos do 2º e do 3º ano. Esta foi uma das razões porque escolhi o politécnico, essa coisa tão desvalorizada face à universidade.
Fiquei a pensar na palavra família, essa batalha interior sobre o que é ser ou não ser, ter ou não ter. No bom do assunto, no mau do assunto. Família cheira a máfia e a negócio escuro em combinação com negócio. Os Salgados, os Mello, esses. Mas pode também ser aquela coisa desfasada deste capitalismo feroz que tudo invadiu, a mercearia que passava de pais para filhos num bairro em que toda a gente se conhecia. Eu tenho essa tremenda nostalgia de um mundo em paz, não é a dimensão de uma aldeia pequenina, pobre e sem ambições, mas é nostalgia das coisas simples e verdadeiras, da solidez dos afectos. De nem tudo se mover por dinheiro, do profissionalismo não ser asséptico, inodoro, incolor.
Não sei se a minha filha aprende isso nas aulas de ética. Não sei se são assim por serem uma família. Certo é que o pai mais velho me dava a mão de vez em quando: está tudo bem, está bem? E ela dizia-me como se eu fosse uma criança: está tudo a correr bem, está tudo conforme o previsto. No fim deu-me um beijo na testa, ainda eu estava agarrada à cadeira, depois de quatro horas de intervenção. Não sei se tudo correrá bem agora mas o pavor que eu tinha já lá vai (sempre acordada, não é como quando nos colocam a dormir e só acordamos depois). O meu amor na sala de espera, a manhã toda. E de vez em quando alguém passava por lá para lhe dar notícias. Também esse cuidado, saber que ele entraria se fosse preciso, que elas o chamariam. É preciso dizer que da primeira vez que lá fui entrei em pânico e tive que me levantar várias vezes da cadeira, que o coração me saltava do peito, que estava em plena crise de claustrofobia, coisa que conheço muito bem. Como é que passa? Meus senhores, digam lá nos cursos de medicina, ensinem-nos, passa quando nos dão segurança e conforto. Para perceberem a vitória, pensem que eu sou uma pessoa que mal se senta numa cadeira de cabeleireiro e que não se deita numa maca para qualquer trabalho de cuidados femininos, vulgo depilação, sobrancelhas ou qualquer outra coisa do género, a simples ideia de alguém debruçado sobre mim, acrescentada do facto de ter de permanecer imóvel, gera-me pânico. Há que viver com certos buracos negros que nos habitam e há gente que ajuda muito.
~CC~
Sem comentários:
Enviar um comentário
Passagens