domingo, 25 de março de 2018

Navegar



São os outros que me dizem que ainda sou uma pessoa doente, enquanto eu sou toda o esquecimento disso.  Nem é querer ser normal, é grande parte de mim já se situar nesta outra vida que ganhei. Eu era doente naquela outra vida. Foi na minha escola que a secretária, com genuína preocupação e incrédula me perguntou: mas pode levar vacinas para ir a África? E eu nem soube responder. Por uns segundos nem percebi porque é que ela me estava a perguntar aquilo. Perguntei-me sobre a pergunta dela e não sobre a resposta a dar-lhe. Talvez exagere porque está a fazer apenas um ano que saí do hospital, mas a maior parte do tempo não tenho a consciência do meu exagero. Só acontece quando pego um peso que não consigo erguer, quando o cansaço ao fim do dia me derruba, quando não dormi como devia ser porque espreitaram os sintomas (como hoje). Limitar-me em termos dos desafios a enfrentar pela doença não me faz sentido, não há protecção que nos valha em relação ao regresso do bicho mau. A reflexão sobre o sim e o não em relação ao que escolho ou não fazer não pode ser por aí. Tenho que avaliar mais pelo prazer que as coisas me irão dar. Contudo, nem sempre é fácil fazer essa avaliação. Cada coisa boa pode trazer lá dentro uma coisa que gosto menos. Por exemplo, gosto de viajar mas não gosto de andar de avião. E nem sempre o que eu sei que me daria mais prazer é possível, nem tudo é possível, às vezes falta a companhia, o dinheiro, o tempo. Mas vou avançando por pequenas aventuras, alargando o círculo do que faço, enfrentando um risco maior a cada mês que passa. Não é mau que os outros me lembrem das minhas limitações, são a minha consciência no exterior de mim, a vigilância que não faço. Mas há ali um limite, uma fronteira ténue, se exageram sinto que me atribuem um estatuto de incapacidade que me dói. Para eles também não é fácil, trata-se de proteger sem abafar, cuidar sem exagero, deixar navegar avisando dos riscos da navegação, uma coisa que as mães, quase todas as mães sabem como é.

~CC~







2 comentários:

  1. CC, a não ser o pessoal médico e quando é necessário, não é equilibrado mais alguém dizer a pessoas conscienciosas que se é/foi doente. A menos que seja o próprio a abordar o assunto. O mesmo se passa em relação a outras situações difíceis de gerir.
    A curiosidade e outras vontades do género, são para filtrar bem e usar freios.

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  2. Pois é Isabel, mas isso está constantemente na cabeça dos outros mesmo quando na nossa já não está quase.
    ~CC~

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