Um dentista não pode curar a sua própria dor de dentes mas compreende-a melhor que ninguém, o mesmo acontece com todos os outros médicos e terapeutas. Essa compreensão que acrescenta uma lucidez maior ao núcleo da dor pode ser ainda mais cruel. Quando a dor não é física mas psicológica e as suas causas se difundiram pelo tempo não tendo no passado mais do que um nó, o psicólogo é em causa própria alguém que sofre duplamente. Poderia entregar essa dor nas mãos de qualquer colega mas é como se soubesse antecipadamente o que o outro lhe vai dizer e por isso diz isso a si mesmo. Não escolhi clínica por não acreditar que uma dor se possa tratar nas quatro paredes de um consultório, hoje acho que tenho disso outra perspectiva, menos ecológica e menos assertiva, menos crítica do divã.
Tudo é afinal válido na busca que uma pessoa empreende no sentido da sua própria cura, do seu estar bem. Sendo agnóstica já tive vontade de me sentar numa igreja e falar com Deus. Sendo crítica do fechamento psicanalítico já tive vontade de me sentar num divã, sendo contra ansióliticos, antidepressivos e medicamentos para dormir, já os usei em SOS, achando a meditação conversa de enganar meninos e almas fracas, já tive vontade de meditar. E ao mesmo tempo que desejava nunca deixar a felicidade que acho que é o meu desígnio natural, um gosto enorme pela vida, já a achei um fardo imenso do qual não me importava de me livrar, ou desgosto de mim própria, pena de ser quem sou. Estes momentos escuros que se atravessaram no meu caminho algumas vezes, umas com razões precisas e outras com contornos obscuros e muito centrados na infância, ensinaram-me a ser tolerante com os fracos, os deprimidos, os inconstantes, os fóbicos, os loucos. É estranho que encontremos na dor o ensinamento, a compreensão, a plasticidade, mas a empatia constrói-se melhor não só quando entendemos a dor do outro mas quanto a entendemos a partir de dor semelhante. Hoje acho-me mais capaz de abraçar a dor de qualquer outro ser humano.
~CC~
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