quinta-feira, 21 de março de 2024

O meu primeiro poeta

 

Cala-te, voz que duvida
e me adormece
a dizer-me que a vida
nunca vale o sonho que se esquece.

Cala-te, voz que assevera
e insinua
que a primavera,
a pintar-se de lua
nos telhados,
só é bela
quando se inventa
de olhos fechados
nas noites de chuva e de tormenta.

Cala-te, sedução
desta voz que me diz
que as flores são imaginação
sem raiz.

Cala-te, voz maldita
que me grita
que o sol, a luz e o vento
são apenas o meu pensamento
enlouquecido…

(E sem a minha sombra
o chão tem lá sentido!)

Mas canta tu, voz desesperada
que me excede.
E ilumina o Nada
com a minha sede.

José Gomes Ferreira


Era um livro com capa azul e sem nada que revelasse quem era o seu autor, dos muitos que o meu pai deixou para trás quando partiu de Angola e foi para o Brasil, Li-o aos doze anos com a sofreguidão de quem descobre um mundo novo, posso ter tropeçado em algum poema num manual da escola, mas não sabia que existia a poesia e muito menos me tinha ainda encontrado com ela em pleno deslumbramento.

6 comentários:

  1. Bem cedo tomou contacto com a poesia a sério, CC. Bem haja pelos anos em que a tem cultivado, decerto com carinho. Não creio que, aos doze anos gostasse desse poema que, de certeza, a minha mente de infância não atingia. No entanto, cedo comecei a encontrar nas pequenas coisas algo de admirável. Não lhe sabia nome. Os poemas eram quadras simples do livro de leitura, Balada da Neve que sabíamos de cor; As Vozes dos Animais, de que só lembro a primeira quadra. Não tinha a poesia em grande conta. Teria mais de vinte quando, um tanto por intuição e outro tanto por conversa escutada entre terceiros, comprei a obra completa de Eugénio de Andrade em livrinhos pequenos, um por mês, do Círculo de Leitores. Devo ao poeta o ter-me despertado para esse modo de escrita. Em simultâneo deu nome ao que sentia em garota sobre o infinito de pasmar que encontrava nas coisas miúdas e me lembra o "tudo está cheio de deuses" de um pré socrático conhecido.
    Hoje leio mais a prosa, sempre gostei de Os afluentes do Silêncio. Soa-me maravilhoso que Eugénio conhecesse tanta gente - real ou através de escritos - e dissesse dela coisas tão bonitas e profundas, a tender para o eterno.

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    1. O primeiro que me tocou foi este:

      Entrei no café com um rio na algibeira
      e pu-lo no chão,
      a vê-lo correr
      da imaginação...

      A seguir, tirei do bolso do colete
      nuvens e estrelas
      e estendi um tapete
      de flores
      a concebê-las.

      Depois, encostado à mesa,
      tirei da boca um pássaro a cantar
      e enfeitei com ele a Natureza
      das árvores em torno
      a cheirarem ao luar
      que eu imagino.

      E agora aqui estou a ouvir
      A melodia sem contorno
      Deste acaso de existir
      -onde só procuro a Beleza
      para me iludir
      dum destino.

      E depois dele também fiz o percurso pelo Eugénio de Andrade e depois pela Sophia...só depois viajei a lugares mais complexos mas ainda hoje gosto destes.

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  2. Respostas
    1. Uma editora antiga talvez...ou então um modo de disfarçar alguém que antes do 25 de abril não seria leitura abonatória, não sei bem (poderia ter outra capa de papel que saiu ou o meu pai tirou). Olá Diogo:)

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  3. Um dos nossos grandes poetas. Ainda me lembro de o ver ao vivo.
    Um abraço.

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    1. Também eu...e fiquei ali sem coragem de me aproximar...
      Abraço

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